segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Varíola - (Uma Arma Biológica da classe A)

A Varíola - Arma Biológica da classe A

  • A varíola foi a primeira doença infecciosa extinta da face da Terra pela vacinação preventiva. A história da vacina antivariólica merece ser relembrada pela magnitude da vitória alcançada e pela esperança que o método nos trouxe de obter a erradicação de outras doenças infecciosas.
Até o final do século XVIII a varíola constituía verdadeiro flagelo humano, ceifando vidas ou desfigurando o rosto dos sobreviventes com cicatrizes indeléveis e perda de visão. Calcula-se que no século XVIII houve, somente na Europa, sessenta milhões de vítimas de varíola (Ministério da Saúde, 2004).
  • A varíola foi introduzida no Brasil pelos colonizadores portugueses, vinda tanto da Europa como da África. A primeira epidemia de varíola ocorreu em 1563, iniciando-se na Bahia e causando cerca de trinta mil mortes. 
Os indígenas eram particularmente vulneráveis e muitas tribos foram dizimadas por verdadeiras epidemias de varíola. Calcula-se que a varíola tenha ocasionado maior número de óbitos nos três primeiros séculos de colonização do que todas as outras doenças reunidas (Santos Filho, 1991, p. 162).
  • Na luta contra a varíola, os povos orientais utilizavam há mais de mil anos a chamada “variolização”, que consistia na inoculação de material retirado das pústulas de um enfermo, na pele de um indivíduo são. 
Este adquiria a enfermidade em forma mais branda do que através do contágio natural. Contudo, apesar de sua relativa benignidade, a doença se manifestava com todo o seu cortejo sintomático, deixando, por vezes, cicatrizes no rosto e no corpo das pessoas inoculadas.
  • O método da variolização estendeu-se aos países do Ocidente no século XVIII, graças sobretudo à esposa do embaixador inglês em Constantinopla, lady Montagu, famosa por sua beleza e elegância, que foram afetadas pela varíola. 
Em 1717 ela fez inocular seu filho de três anos de idade e, em 1721, já de volta à Inglaterra, sua filha de cinco anos. A corte real inglesa interessou-se pelo método, que passou a ser chamado de bizantino, em alusão à Bizâncio, antigo nome de Constantinopla (hoje Istambul). 
  • A variolização difundiu-se prontamente na Inglaterra e teve defensores ilustres em outros países, como Von Haller na Alemanha, Voltaire na França, e Benjamin Franklin nos Estados Unidos (Ujvari, 2003, pp. 130-134).
Em 17 de maio de 1749 nascia na pequena cidade de Berkeley, na Inglaterra, Edward Jenner, predestinado a revolucionar o método de prevenção da varíola (Friedman e Friedland, 2001, pp. 102-140; Bariety e Coury, 1963, pp. 574-578). 
  • Submetido ele próprio, na infância, à variolização, o que mais o impressionou não foi tanto a inoculação em si, porém os preparativos para a mesma, que consistiam em sangria, purgativos e dieta de fome.
Na região de Gloucestershire, na Inglaterra, onde se localiza a cidade de Berkeley, o gado era acometido com frequência de uma doença com alguma semelhança com a varíola humana, conhecida por cowpox. 
  • As vacas afetadas por esta doença apresentavam vesículas e pústulas no ubre e as pessoas que as ordenhavam adquiriam a doença, manifestando lesões semelhantes nas mãos, lesões estas que desapareciam espontaneamente. Era observação corrente entre a população rural que as pessoas que adquiriam a cowpox ficavam protegidas da varíola humana, conhecida em inglês por smallpox.
Decidido a estudar medicina, Jenner frequentou inicialmente o serviço de um reputado médico, Ludlow, em Sodbury, onde certa vez ouviu uma paciente dizer: “eu não posso ter smallpox, pois já tive cowpox”. Esta frase ficou retida em sua memória e foi o leitmotiv de todas as suas observações em anos posteriores. 
  • Transferindo-se para Londres a fim de dar continuidade aos seus estudos, conheceu o cirurgião e grande pesquisador John Hunter, de quem se tornou discípulo dileto e com quem adquiriu o gosto pela observação meticulosa e pela investigação científica. Voltando a clinicar em Berkeley, a ideia de proteger as pessoas contra a varíola humana (smallpox) por meio da varíola bovina (cowpox) tornou-se uma obsessão. 
Durante vinte anos, Jenner, pacientemente, colecionou observações que demonstravam que os indivíduos previamente contaminados pela doença bovina ficavam refratários à varíola.
  • Em maio de 1796 realizou a sua experiência definitiva. Uma mulher, de nome Sara Nelmes, havia adquirido a varíola bovina ordenhando vacas doentes. Jenner inoculou a linfa retirada de uma vesícula da mão direita de Sara Nelmes na pele do braço de um menino de oito anos, de nome Jacobo Phipps. 
A criança desenvolveu a conhecida reação eritêmato-pustulosa no local da escarificação e escassos sintomas gerais. Decorridas seis semanas Jenner inoculou o pus da varíola humana na criança, que não adquiriu a doença. Estava descoberta a vacina antivariólica.
  • Somente em 1798, depois de ter inoculado com sucesso mais três pacientes, fez a sua primeira comunicação à Royal Society, de Londres, da qual era membro. Recebeu em resposta uma advertência de que “deveria zelar pelo bom conceito de que desfrutava na sociedade por suas comunicações anteriores e que não deveria arriscar o seu nome expondo ante a sábia Sociedade nada que estivesse em desacordo com os conhecimentos consagrados”. As comunicações anteriores de Jenner a que aludia a Royal Society referiam-se à história natural do cuco, ave comum na Europa.
A atitude da Royal Society, uma respeitável instituição científica, pode parecer ridícula nos dias de hoje. Em todas as épocas, entretanto, as grandes inovações são recebidas com reserva e até hostilidade por seus contemporâneos.
  • Os próprios amigos de Jenner, em Berkeley e em Londres, opuseram-se à ideia de inocular a vacina de origem bovina em seres humanos. Jenner chegou a ser ridicularizado.
Decidiu então publicar o resultado de suas observações por conta própria, sem aprovação da Royal Society, o que fez em um pequeno livro de 74 páginas, intitulado An Inquiry into the Causes and Effects of the Variolae Vaccinae, a Disease Discovered in Some of the Western Counties of England, Particularly Gloucestershire and Known by the Name of Cowpox (Investigação sobre as Causas e Efeitos da Varíola da Vaca, uma Doença Descoberta em Algumas Províncias a Oeste da Inglaterra, Particularmente Gloucestershire e Conhecida pelo Nome de Cowpox) (Friedman e Friedland, op. cit.).
  • Por algum tempo houve muita resistência e crítica ao método de Jenner. Parecia absurdo introduzir no corpo humano o germe de uma doença de animal. Apesar disso, a vacinação antivariólica difundiu-se por todo o mundo.
Muito contribuiu para a sua credibilidade a decisão de Napoleão Bonaparte, que mandou vacinar o exército francês e promulgou um decreto a favor do novo método (Bariety, op. cit.). Jenner tornou-se famoso e o Parlamento inglês concedeu-lhe um prêmio de dez mil libras esterlinas em 1802 e outro de vinte mil libras em 1807.
  • No Brasil, a vacinação antivariólica foi introduzida ainda no século XVIII porém era praticada de maneira irregular e ao mesmo tempo combatida e rejeitada pela população. Os surtos epidêmicos continuaram ocorrendo no século XIX e a vacinação só se tornou efetiva a partir do século xx, após a campanha iniciada no Rio de Janeiro por Oswaldo Cruz (Santos Filho, op. cit.).
Em 1980, menos de duzentos anos após a descoberta da vacina, a Organização Mundial de Saúde declarava erradicada a varíola da face da Terra (Organização Mundial da Saúde, 1980).
  • O adjetivo latino vaccinae (de vaca) foi substantivado e adaptado a todos os idiomas de cultura: inglês, vaccine; francês, vaccin; alemão, vakzine; espanhol, vacuna; italiano, vaccino; português, vacina. Por analogia, passou a designar todo inóculo dotado de ação antigênica, independente de sua origem. A vaca, considerada um animal sagrado em certas seitas religiosas da Índia, foi, assim, consagrada também pela ciência no termo vacina.
Recuperaremos as primeiras experiências da doença no país e o seu impacto para a saúde pública nacional e para os serviços criados à época, assim como sua trajetória ao longo do período republicano até sua erradicação da década de 1970 no país. 
  • No que se refere ao processo geral de estruturação dos serviços e de políticas de saúde pública e o seu impacto no quadro nosológico brasileiro, esperamos compreender as mudanças de orientações das políticas de saúde pública em relação a essa doença, principalmente no tocante aos motivos que participaram efetivamente no processo de institucionalização da Campanha de Erradicação da Varíola no Brasil, como parte de um Programa Mundial de Erradicação da Varíola, proposto pela Organização Mundial de Saúde no ano de 1958, em sua Décima Primeira Assembléia Mundial de Saúde.
Subdividimos este capítulo em vários segmentos. Nos primeiros procuramos fazer um contraponto, no qual se discute a doença em sua dimensão sociocultural, apresentando sua trajetória como problema de saúde pública em distintas partes do mundo. Em seguida, tratamos do desenvolvimento das técnicas de imunização contra a doença, buscando mostrar como se deu o processo de descoberta do imunizante e seu desenvolvimento posterior, tema já bastante debatido pela historiografia e pela literatura médica.
  • Nos segmentos finais, procuramos traçar a trajetória da varíola no país até sua erradicação no que se refere especificamente às estruturas estatais criadas para o seu controle e ao comportamento que teve no território nacional. Também mostramos de que forma as transformações ocorridas no campo da medicina científica e da saúde pública interferiram no comportamento dessa doença no país.
A Varíola como como Entidade Biomédica:
  • A varíola foi a primeira doença erradicada da face da Terra pela ação da medicina. Anteriormente, constituiu-se como uma das grandes pragas da humanidade, ocorrendo de forma endêmica e epidêmica em todo o mundo, inclusive no Brasil. Ela foi caracterizada pela medicina como uma doença viral de transmissão pessoa-pessoa. Doença exantemática caracterizava-se por início súbito, com febre, calafrios, cefalagia, raquialgia intensa e prostração, que perduravam por três ou quatro dias. 
Após esse período, ocorria uma queda da temperatura e surgia a erupção, que passava pelas fases de mácula, pápula, vesícula e pústula, com formação de crostas que se secavam e se destacavam, ao término da terceira semana. A erupção normalmente era generalizada, e mais intensa nas proeminências, nas superfícies flexoras e extensoras e nas depressões.
  • Aparecia inicialmente na face (onde era mais intensa), posteriormente nos antebraços, punhos e mãos, apresentando maior predileção pelos membros, especialmente em suas partes distais, que pelo tronco. A erupção era ainda mais abundante nos ombros e no peito que no dorso e abdômen (Relatório Oficial da Associação Americana de Saúde Pública – OPAS/OMS, 1960).
A varíola clássica (varíola major) se constituiu como doença grave com letalidade de 30%, porém, a outra forma, chamada varíola hemorrágica, que era rara, caracterizava-se pelo aparecimento de manchas púrpuras e hemorragias cutâneas, sobrevindo a morte em três ou quatro dias, geralmente antes que se manifeste a erupção típica. 
  • Já o alastrim (varíola minor) era a forma mais benigna da doença; com letalidade inferior a 1%, apresentava sintomas prodrômicos brandos, erupção discreta e pouco extensa, com evolução mais rápida das lesões (Relatório Oficial da Associação Americana de Saúde Pública – OPAS/OMS, 1960).
Os registros sobre o século XX mostram que, em relação à prevalência da doença, sua distribuição mundial não era uniforme, podendo apresentar-se sob forma esporádica, endêmica ou epidêmica, conforme o estado de imunidade da respectiva população e a freqüência com que ela era importada. Sua incidência era maior no período do inverno e menor no verão. 
  • O homem se constituiu o único reservatório do vírus, e a fonte de infecção eram as secreções das vias respiratórias e as lesões da pele e das mucosas do paciente, bem como os objetos por elas contaminados. O modo de transmissão se dava por contágio direto. 
Não era necessário o contato íntimo com o paciente; a transmissão poder-se-ia realizar pelo ar, a curtas distâncias e em ambientes fechados, e também através de objetos ou de indivíduos recentemente contaminados com secreções respiratórias ou material proveniente das lesões da pele ou das mucosas do paciente. As crostas permaneciam infectantes por prazo de tempo indeterminado (Relatório Oficial da Associação Americana de Saúde Pública – OPAS/OMS, 1960).
  • A varíola era causada pelo Poxvirus variolae, que pertence a um grupo de vírus (grupo varíola-vacínia). O vírus da varíola era um dos mais resistentes, em particular aos agentes físicos. Crostas de lesão abandonadas por mais de um ano à temperatura ambiente conservavam a infectividade na poeira dos cômodos habitados por variolosos, e durante longo tempo poderia ser encontrado o vírus (Angulo, 1982). O período de incubação se dava de 7 a 16 dias; geralmente 12 dias. 
O período de transmissibilidade ocorria entre o aparecimento dos primeiros sintomas e a queda completa das crostas, ou seja, de duas a três semanas. A doença era mais contagiosa nas primeiras fases de sua evolução (Angulo, 1982). A susceptibilidade à doença era geral, embora nem todo indivíduo susceptível, exposto ao contágio, contraísse a doença. A varíola trazia, geralmente, imunidade permanente. 
  • Outro fato importante na patogenia e epidemiologia da varíola era a existência de infecções variólicas sem manifestações clínicas, mesmo em indivíduos não vacinados ou sem varíola prévia. Este fato foi também demostrado pela primeira vez no Brasil e confirmado, inclusive para a v. major (Relatório Oficial da Associação Americana de Saúde Pública – OPAS/OMS, 1960).
A contagiosidade dos casos de varíola parecia variar paralelamente à sua severidade clínica. Diversos autores são da opinião de que, pelo menos praticamente, as infecções subclínicas não são contagiantes.
  • A varíola sempre foi tida como uma das doenças mais contagiosas e perigosas, porém, no século XX, predominou a varíola minor, que não passava, na prática, de uma doença um pouco mais severa que a varicela. 
A similaridade era tão grande que, no Brasil, apelidava-se a v. minor de “varicela”, enquanto a verdadeira varicela era denominada “catapora”. A intensidade da doença, a mortalidade que causava e sua contagiosidade variavam muito com o tempo e a contínua exposição do organismo humano ao vírus. 
  • Na segunda metade do século XX, a doença era muito menos grave do que havia sido entre o final do século XIX e o início do XX. Segundo os especialistas, reduzida a números, a mortalidade pela forma severa (v. major) não se afastava muito de 20%, e, em nenhuma das duas formas, um caso dá origem a mais de três a cinco outros casos. 
Existe evidência epidemiológica de que a varíola era menos cantagiosa que a maioria das moléstias exantemáticas da infância, em particular, menos que o sarampo e ainda menos que a gripe (Angulo, 1982).

A Varíola: Um Problema de Saúde Pública:
  • A varíola constituiu um sério problema de saúde pública no mundo, inclusive no Brasil, ocorrendo de forma endêmica e epidêmica em muitas regiões. Foi uma das grandes pestes da humanidade. Sua presença associa-se aos caminhos e deslocamentos do homem na Terra, e o combate à doença está intimamente relacionado com a história das descobertas científicas do século XIX e início do século XX.
Há muitos séculos, a varíola era conhecida na Ásia e na África. Na época Medieval, foi difundida na Europa. Após a descoberta do Novo Mundo, ela foi introduzida nas Américas, primeiro pelos europeus e, depois, pelos escravos africanos. Assim, ocorreu endêmica e epidemicamente em todas as regiões do mundo.
  • O vírus da varíola surgiu como um vírus pox de animais existente nas espécies domesticadas, quando as populações humanas começaram as práticas agrícolas e a criação de animais. Acredita-se que ele evoluiu, e se adaptou gradualmente a humanos. As primeiras vítimas humanas viveram, provavelmente, em uma das primeiras áreas de concentração agrícola na Ásia ou África, há aproximadamente 10.000 anos (Hopkins, 1983).
Historiadores sugerem que as marcas na face mumificada do faraó egípcio Ramsés V são conseqüência de varíola. No ano de 1100 a.C., já era conhecida na China, com o nome de “tai-tu”, onde aparecem relatos de grandes epidemias (Horwitz, 1965).
  • No ano 312 de nossa era, a varíola causou um grande número de mortes em Roma. A partir do ano 675, é registrada na Irlanda e, posteriormente, na Espanha, onde a introdução da doença pode ser atribuída a invasores sarracenos. Rosen (1994) menciona um tratado de Razes (Abu Barrk El Razi), do início do século X, onde os aspectos clínicos e a evolução da doença foram pela primeira vez caracterizados e descritos de forma detalhada, bem como é relatada a disseminação da moléstia a partir do Oriente, opinião compartilhada por Avicena e outros escritores muçulmanos dos séculos X e XI. Estudiosos de sua história parecem concordar que, ao fim do século VI, a varíola se tenha tornado epidêmica na Arábia e se espalhado, através da área mediterrânea, até a Europa.
As epidemias relatadas na Itália e França, em 570, por Marius, bispo de Avenches, e por Gregório, de Tours (em 581), parecem se dever a surtos de varíola. Segundo Horwitz (1965), Marius cita, pela primeira vez, a palavra varíola, possivelmente derivada do latim varius (moteado, salpicado) ou varus (granilho), significando, para Rosen (1994), simplesmente pintado, pontilhado.
  • Já nos séculos XVI e XVII, a varíola começou a ser reconhecida como doença comum na Inglaterra, sendo que os primeiros Boletins de Mortalidade impressos para Londres registram-na como enfermidade distinta, com certa regularidade nos registros, e crescente gravidade (Rosen, 1994). No século XVII, considerava-se a doença uma parte inevitável da infância, dada a extensão de sua presença entre as sociedades européias.
A varíola, presente há muitos séculos na Europa e Ásia, não era conhecida no Novo Mundo antes da chegada dos europeus, e, quando apareceu neste continente, provocou devastadoras epidemias, chegando a exterminar tribos inteiras americanas (McNeill, 1976). O exército de Hernán Cortez introduziu a varíola na América em 1520, quando do início da conquista espanhola. 
  • Segundo se afirma, mais de três milhões de mexicanos morreram da doença, o que facilitou a empresa dos conquistadores espanhóis. Em 1563, ela apareceu pela primeira vez no Brasil, e, em 1640, penetrou na América do Norte. Afirma-se que as epidemias mais mortíferas se registraram sempre na parte ocidental da América indo-latina, a mais densamente povoada. 
As epidemias assolaram também o Peru, entre 1720 e 1729, o México, nos anos de 1763, 1779 e 1797, e, em 1802, toda a América central e a América do Sul. Durante a conquista da América do Norte, os índios de Massachussets e de Narragansett, que somavam cerca de 40 mil em 1633, sofreram grande redução em virtude de sua presença. Ao todo, atribui-se à varíola, durante a penetração espanhola na América, a morte de seis milhões de índios, aproximadamente a metade da população original (Rodrigues, 1977).
  • Estima-se que, na Europa, durante o séc. XVII, morreram de varíola mais de 60 milhões de pessoas. No século XVIII, morreram 14 mil pessoas em Paris no ano de 1707, e, em toda a França, país europeu onde a varíola fez maiores danos, a última epidemia grave ocorreu durante a Guerra Franco-Prussiana (1870). 
Entre 1893 e 1897, uma epidemia de varíola causou mais de 275 mil vítimas na Rússia, e, no século XX, apareceram muitos casos na União Soviética: 102 mil casos em 1919; 57.590 casos em 1920; 71.605 casos em 1921 e 25.047 casos em 1922; sendo que a última cifra coincide com a introdução da prática de vacinação sistemática (Horwitz, 1965).

A varíola se alastra pelo corpo causando febre, hemorragia 
e falência dos órgãos.

Sobre a Imunização contra a Varíola:
  • A historiografia e a literatura médica sugerem que, desde os tempos mais remotos, o homem buscou um modo de se defender da varíola; neste sentido, a tentativa de imunização contra a doença se configura como prática milenar, antecedendo a elaboração de teorias e conceitos que envolvem a elucidação científica dos processos imunitários e a fabricação de vacinas (Moulin, 1996; Hopkins, 1983; Darmon, 1986).
Desde a Antiguidade, já se tinha observado que a varíola poderia ser evitada totalmente ou em sua forma mais grave através do contato entre homem sadio e doente, ou através do contato do homem sadio com as crostas originadas das pústulas dos variolosos. Tais constatações estimularam a disseminação de práticas conhecidas como “variolização”, “inoculação” ou “transplantação” (Moulin, 1996).
  • Apesar de tecnicamente diferentes entre si, tais práticas consistiam em implantar no homem sadio o vírus variólico contido na secreção retirada das pústulas de pessoas doentes, objetivando-se provocar a doença em sua forma mais branda, evitando-se a forma mais grave.
Segundo Fenner et al. (1988), por volta do ano 1000, os hindus guardavam durante certo tempo as roupas contaminadas dos variolosos para depois aplicar pedacinhos do seu pano sobre escarificações feitas intencionalmente na pele dos indivíduos sãos. Tal procedimento sugere tanto o conhecimento empírico das vantagens profiláticas da inoculação do pus como a observação de que era possível obter uma atenuação do agente da moléstia pelo uso tardio dos fragmentos das roupas.
  • Práticos chineses coletavam as crostas das feridas dos variolosos, reduziam-nas a pó, e então sopravam alguns grãos, às vezes com o auxílio de um tubo de bambu, nas narinas de pessoas em busca de proteção. 
Hindus e chineses tinham observado a possibilidade de se adquirir imunidade contra certas doenças, e haviam entendido que, se determinada moléstia grave normalmente atacava um indivíduo apenas uma vez, provocando um ataque atenuado do mal, assegurava-se a proteção das vítimas em potencial (Fenner et al., 1988). Foram encontrados nas referências relatos distintos sobre a introdução da prática de variolização na Europa. 
  • A primeira afirma que a prática de inoculação surgiu em Constantinopla em fins do século XVII e início do XVIII: dois médicos gregos, Pylarini e Timoni, removiam a matéria pastosa das pústulas dos variolosos e, utilizando-se de uma agulha previamente molhada no pus, faziam pequenas incisões em pessoas sãs. Timoni enviou uma descrição de seu método ao Dr. John Woodward, de Londres, tendo este apresentado um relatório sobre o assunto na Royal Society, publicado em 1714 (Chalhoub, 1996). 
Após realização de experiências em cobaias humanas selecionadas, o método ganhou notoriedade. Ainda na década de 1720, passou a ser utilizado na Alemanha, chegando mais tarde à França e à Rússia. Apesar da propagação na Inglaterra e em outros países da Europa, a variolização tornou-se logo matéria de controvérsias, sendo reconhecido que a variolização às vezes causava a morte dos inoculados. 
  • A segunda referência à chegada da variolização à Europa narra que no início do século XVIII, a esposa do embaixador da Inglaterra na Turquia ali aprendeu o método da variolização e, entusiasmada com a estranha terapêutica, propagou esta prática quando regressou à Inglaterra em 1718. Em abril de 1721, inoculou sua filha na presença dos médicos da Corte. Posteriormente, repetiu-se tal prática em seis presos condenados (Hopkins, 1983).
A variolização nas colônias inglesas da América chegou oficialmente junto com a epidemia de 1721, que parece ter viajado da metrópole para as colônias, atingindo primeiro o Caribe e depois a Nova Inglaterra. No século XVIII, a varíola era uma doença que atingia a América, África, Ásia e Europa, sendo que a variolização era a prática preventiva adotada por muitos países. 
  • Os portugueses não compartilhavam do entusiasmo europeu e norte-americano com a variolização. Parece que a explicação para isso se deve ao fato de que, em Portugal, a varíola não era um grave problema de Saúde Pública. Por outro lado, a doença era freqüente no tráfico negreiro e nas colônias, porém, a oposição das autoridades médicas portuguesas evitou a adoção da variolização, a não ser de forma esporádica (Chalhoub, 1996).
A vacina antivariólica, surgida em fins do século XVIII (1797), resultou da observação do médico inglês Edward Jenner, de que ordenhadeiras de vacas com cowpox, ficavam protegidas contra a varíola. A observação o estimulou a desenvolver testes em pessoas sadias, com a finalidade de reproduzir o fenômeno. 
  • Em 14 de maio de 1796, Jenner efetuou sua primeira vacinação em um menino de oito anos e, em 1° de julho do mesmo ano, inoculou-o com pus de um caso de varíola. Com o passar do tempo, os sinais da vacinação desapareceram, e o menino não apresentou sinais nem sintomas da doença (Fischmann, 1978). 
Desta forma, Jenner, a partir da pústula da vaca, obteve um produto que passou a denominar vacina, que, ao ser inoculado no homem, fazia surgir, no local das inoculações, erupções semelhantes à varíola. 
  • Dessas erupções, era retirado o “pus vaccínico”, utilizado para novas inoculações. Formava-se, assim, uma cadeia de imunização entre homens, funcionando o cowpox da vaca como um primeiro agente imunizador, e o homem como produtor e disseminador da vacina, conhecida como vacina jenneriana ou humanizada (Fernandes, 1991).  O método desenvolvido por Jenner modificou as práticas de controle da doença e a variolização foi sendo pouco a pouco substituída pela prática de vacinação.
A vacina de E. Jenner foi acolhida com grande entusiasmo no continente Americano. A partir de 1801, os periódicos mais importantes da América-latina, tais como Almanaque Peruviano e Gazeta de México, publicavam freqüentemente artigos comentando a propagação da varíola, sua suposta relação com as mudanças meteorológicas e, principalmente, informavam sobre as ações que estavam sendo desenvolvidas para introduzir a vacinação antivariólica, despertando grande interesse em amplas camadas da população.(Gicklhorn & Schadewaldt, 1968).
  • Nesta parte da América, os primeiros esforços ficaram inicialmente reduzidos a ações locais. De forma bem diferente, na América do Norte, a vacinação antivariólica se propagou rapidamente desde o ano de 1800, o que se deveu principalmente ao trabalho desenvolvido por Benjamin Waterhouse e James Smith, e já em 1802, inaugurou-se em Baltimore o Primeiro Instituto de Vacinação Antivariólica (idem).
A prática da vacinação tinha como inconveniente o fato de seu efeito diminuir com o tempo. Além disso, para muitas pessoas, a reinoculação constante da vacina era fonte de preconceitos, imaginando-se que uma grande gama de doenças, como a sífilis e a tuberculose, eram transmitidas pela vacinação.
  • No último quartel do século XIX, esta forma de vacinação cairia em desuso com o desenvolvimento da vacina animal. Esta mantinha o mesmo princípio da técnica precedente – obtenção de imunidade através da inoculação de doença semelhante – só que era replicada a partir das próprias pústulas das vacas (posteriormente, a partir da pele de vitelos), eliminando a prática da inoculação braço a braço (Fernandes, 1991). 
A vacinação animal pela técnica de inoculação e retirada das pústulas de vitelos foi utilizada durante dezenas de anos, sendo a base para a criação de diversos institutos vacínicos (ou vacinogênicos) que replicaram em todo o mundo a mesma técnica com poucas modificações. 
  • Nos últimos anos do século XIX, esses institutos de produção de vacina imprimiram maior sofisticação a esse processo com a colheita da polpa, pesagem e armazenamento em frigorífico. Antes de ser processada, uma mostra dessa polpa era examinada para evitar as possíveis contaminações por outros microorganismos patogênicos. Depois de triturada e filtrada, adicionava-se água – posteriormente glicerina – à polpa que era colocada em tubos fechados a maçarico e finalmente embaladas para a distribuição.
A forma de elaboração da vacina antivariólica não mudou muito até meados do século XX. A título ilustrativo, apresento, a seguir, um extrato de depoimento do acervo do Programa de História Oral da Casa Oswaldo Cruz, no qual o técnico do Instituto Oswaldo Cruz, Fonseca da Cunha mostra como era esse processo até os anos 50. Fonseca da Cunha chefiou durante muitos anos a produção da vacina no Instituto. A citação, embora bastante longa, é interessante por trazer à tona o processo ainda artesanal de produção vigente por toda a primeira metade do século XX.
Eu, durante 10 anos, produzi vacina contra a varíola. Nesse período passamos da vacina clássica, tradicional, (...) pra uma vacina moderna, liofilizada, feita com todas as técnicas consideradas formidáveis. (...). Quando assumi o laboratório, não se fazia ainda a vacina liofilizada. (...) Os animais eram selecionados por nós do laboratório. Saíamos por essas fazendas aí no Estado do Rio, no Sul de Minas, escolhendo. (...)
Primeiro comprávamos os animais, que ficavam aqui fora, em observação. Porque a gente tinha que ver se o animal não vinha doente. Depois de um certo período nos pastos mais distantes, eles vinham, entravam os grupos de 10 ou de 12, colocávamos ali. Depois íamos recolhendo para as baias (...). Então os animais entravam para as baias, e eram lavados diariamente com mangueira d’água, escova e sabão grosso. Como se fosse um bebê. Duas vezes por dia. De manhã e de tarde. Hoje não seria possível nada disso, mas naquela época era assim. Quando os animais estavam prontos, passavam para a inoculação: 3 de cada vez. Houve época em que inoculávamos 6 por semana. O método de inoculação dos animais eu chamaria um método bárbaro.
Havia 3 mesas, os animais eram amarrados sobre as mesas. Só se usavam machos, porque as fêmeas era sempre mais caras. O animal era amarrado, raspava-se o pelo do flanco direito, até os membros, até embaixo, fazia-se uma desinfecção com álcool, e aí vinha um processo do tempo da Inquisição. O operador dos técnicos, com lixa número 0, lixava a perna do animal, até ficar em carne viva. O animal urrava muito, chorava muito. Já pensou? Lixar, esfolar... Bom. Mas era assim. Ele não estava inventando nada. Esse era o processo.
Então enxugava bem, tirava aquele sangue, secava e vinha com vírus vacínico num frasquinho, quer dizer, o vírus em glicerina. Com um pincel, pincelava aquilo tudo, envolvia o animal com um lençol, um avental esterilizado e levava para a chamada sala de incubação da vacina. No fim de 5 dias, os animais voltavam para a mesma mesa. Então, aquela região toda inoculada ou lixada enchia-se de vírus, estava coberta por uma crosta, como se fosse assim um papelão duro.
Lavava-se aquilo, assim mais ou menos, com uma cureta, arrancava-se a crosta toda. Era colocada em frascos com glicerina, anotando-se o número do animal, peso de polpa, data. Essa era a chamada polpa bruta. O material ia para um congelador a menos de 20°. Naquele tempo acho que nem alcançava menos de 20°. E ali ficava, 6 meses, um ano. Porque a glicerina tem uma ação bacteriostática sobre determinados germes.
Com o correr do tempo, as bactérias iam morrendo e ficava o vírus que resistia à ação da glicerina. Então, depois de um ano ou dois ou três tinha muita polpa ali. Aquele material era retirado, descongelado, triturado com trituradores próprios, juntava-se um diluente – entendeu? – fazia-se prova de esterilidade, prova de potência em coelho e, por fim, a vacina era colocada em capilares.
Capilar é um tubinho em vidro branco, fino; na época continha duas dozes de vacina. Ele era fechado de um lado e aberto do outro. A gente colocava dentro de panelas esterilizadas, despejava a vacina dentro, colocava os capilares de boca para baixo, colocava a campânula por cima, fazia e depois desfazia o vácuo. Quando se desfazia o vácuo, como os capilares com boca aberta estavam mergulhados na vacina, a vacina entrava para o interior dos capilares.(...).
Bom. Então esse era o processo: aquele vitelo inoculado, curetado, estava magro, porque ele tinha tido uma viremia, não é, e era sacrificado. (Apud Benchimol. Jaime. Manguinhos: um retrato de corpo inteiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 400-403).
Em relação à vacinação propriamente dita, o procedimento não era menos bárbaro. Como dissemos, na maior parte do século XIX, ela era iniciada com a aplicação do líquido proveniente da pústula de uma vaca acometida pelo cowpox e repassada diretamente de homem a homem através da aplicação do pus das pústulas decorrentes da vacinação. A partir do último quartel do século XIX, esta forma de vacinação cairia em desuso, dando lugar à vacina animal. 
  • Esta nova prática, embora tivesse o mesmo princípio da técnica precedente, era replicada a partir das próprias pústulas das vacas (posteriormente, a partir da pele de vitelos), eliminando a prática da inoculação braço a braço. A vacina era aplicada na região do braço pela escarificação da pele com objeto cortante e colocação da linfa através de grossas agulhas. 
Quando a vacina “pegava”, causava uma pústula local dolorida e de demorada cura, indicando que o paciente havia adquirido imunidade ao mal. A dificuldade desse processo era uma das causas da grande resistência à vacinação observada no início do século XX.

A Varíola - Arma Biológica da classe A