quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Três fases rumo ao desenvolvimento sustentável_do reducionismo à valorização da cultura

Três fases rumo ao desenvolvimento sustentável: 
Do reducionismo à valorização da cultura

Karin Vecchiatti
Engenheira Agrônoma, Mestre em Ciência Ambiental pela Procam/USP
  • Não é preciso uma investigação detalhada para se dar conta do paradoxo no qual o século XX terminou e o século XXI se inicia: por um lado, o crescimento econômico e a transformação tecnológica sem precedentes, por outro, a dramática condição social de inúmeras pessoas, além de problemas ambientais assustadores. 
Se ao longo desses anos desenvolveu-se um aparato científico-tecnológico capaz de resolver grande parte dos principais problemas ecológicos, ficou também cada vez mais notável a incapacidade das formas sociais organizadas de se apropriarem desses meios.
  • Uma das conclusões óbvias que pode ser extraída desse quadro de contrastes é que o crescimento econômico, por si só, não traz automaticamente o desenvolvimento. Na prática, a equação que relaciona crescimento e desenvolvimento ainda não está com suas variáveis equilibradas; ela ainda desafia os economistas questionando se o desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente sustentável estaria realmente na contramão do crescimento econômico.
Para um dos grandes nomes no debate, o economista Ignacy Sachs, o crescimento econômico, se colocado a serviço de objetivos socialmente desejáveis e repensado de forma adequada, de modo a minimizar os impactos ambientais negativos, continua sendo uma condição necessária para o desenvolvimento. Aliás, taxas significativas de crescimento são necessárias, uma vez que é muito difícil redistribuir bens e renda numa economia estagnada (SACHS, 2001). 
  • A importância, então, estaria em se distinguir diferentes tipos de crescimento. A variedade mais freqüente é a "selvagem", com custos sociais e impactos ambientais insuportavelmente altos. Hoje, sabe-se que esse tipo de crescimento impulsionado pelo mercado é inaceitável dos pontos de vista social e ambiental, além de não estabelecer, por si só, uma situação empregatícia satisfatória. Os mercados são por demais míopes para transcender os curtos prazos e cegos para quaisquer considerações que não sejam lucros e eficiência "smithiana" de alocação de recursos (SACHS, 2002).
As variedades "benignas" de crescimento, em contrapartida, requerem justamente o pensamento contrário. Ou seja, a consideração da sustentabilidade do desenvolvimento requer que nosso horizonte de tempo seja expandido (MORIN, 2001). 
  • Enquanto os economistas estão habituados a raciocinar em termos de anos, no máximo décadas, a escala de tempo da ecologia abrange séculos. Além disso, a expressão "desenvolvimento sustentável" não adverte somente dos danos causados por poluição e erosão do ambiente físico de um lado e da pobreza do outro, como se fossem dois fenômenos independentes. 
O tipo "benigno" de desenvolvimento desejável propõe uma conciliação entre o desenvolvimento e o crescimento econômico, sendo, simultaneamente, sensível à dimensão social, ambientalmente prudente e economicamente viável.
  • É claro que essa tarefa de conciliação não é fácil. Mas uma observação mais atenta ressalta que a busca pela sustentabilidade requer a articulação entre três "registros ecológicos": do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana (GUATTARI, 1990). 
Em outras palavras, essa proposta sugere que o rumo à sustentabilidade é:
  • Incompatível com o jogo sem restrições das forças de mercado;
  • Dependente de um aparato tecnológico eficiente;
  • Dependente, em grande parte, das ações geradas a partir de percepções individuais e culturais da sociedade.
É justamente nesse ponto em que reside a importância das políticas públicas. Somente uma articulação ético-política entre essas dimensões poderia direcionar uma revolução social e cultural, reorientando a produção de bens materiais e imateriais, reconciliando o crescimento econômico com as formas de desenvolvimento sustentável.
  • Essa realidade ainda está distante. Mas não se pode negar que avanços foram obtidos no campo das políticas públicas desde os anos 70. O início da tomada de consciência social sobre os inúmeros problemas ambientais naquela década conduziu à redação de relatórios, cujos objetivos eram essencialmente esboçar avaliações globais, fazer emergir as questões consideradas urgentes e formular recomendações imediatas às diferentes instâncias do poder político. 
Desde então, o conceito de meio ambiente como objeto de pesquisa e de políticas públicas aos poucos está se alterando, de forma que seja possível identificar ao longo desse período três fases no pensamento. Esses períodos podem ser caracterizados por diferentes maneiras de abordar os problemas referentes à sustentabilidade, que por sua vez se refletem na formulação e implantação de políticas públicas. São eles:
  • Período inicial, de transição de uma visão pontual para uma visão abrangente dos problemas ambientais;
  • Período de ênfase na gestão, na informação e na articulação territorial;
  • Período incipiente com a atenção voltada para a cultura.
Essa divisão não indica, necessariamente, que as idéias e as políticas públicas características da primeira fase não vigorem nos anos seguintes, como é o caso, por exemplo, do Código Florestal, tampouco que uma preocupação atual não estivesse presente anos atrás. 
  • Contudo, a compreensão dessas três fases (aqui brevemente apresentadas), segundo a abordagem dominante em cada uma delas, parece ser fundamental para traçar um panorama do caminho percorrido e identificar o quão longe se está ainda de uma conciliação entre o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável.
Do pontual ao abrangente:
  • A primeira fase reflete a noção de que os problemas referentes à sustentabilidade não podem ser analisados de forma pontual. O embrião dessa idéia começou a ser formado ainda na década de 70, tendo como marco a Conferência de Estocolmo, primeira reunião oficial a tratar das questões ambientais no âmbito mundial. Organizada pela ONU, a conferência reuniu 113 países e 250 organizações não-governamentais. 
Tinha como objetivos: fazer um balanço dos problemas ambientais em todo o mundo; buscar soluções e novas políticas governamentais no sentido de reduzir o grande número de problemas causados pelo desenvolvimento das sociedades, tais como poluição, deterioração dos ambientes e limitação dos recursos naturais; discutir a urbanização acelerada, mal concebida e caótica; debater o caráter global dessas perturbações de origem humana.
  • Nessa época, entretanto, acreditava-se que a modernização dos processos produtivos seria suficiente para resolver os problemas ambientais e que a solução dependia apenas da legislação e de técnicas de controle de poluição (estratégia que ficou conhecida como "comando-controle"), conforme postulavam os representantes dos países industrializados. 
Mas, ao longo do tempo, percebeu-se que essa é uma visão tecnicista e reducionista, sendo necessária uma abordagem mais ampla dos problemas e das soluções, discutindo-se, necessariamente, o modelo de desenvolvimento internacional.
  • O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu somente na década de 80 e foi consagrado em 1987 pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente – CMMA das Nações Unidas, conhecida como Comissão Brundtland, que produziu um relatório considerado básico:
[...] um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro [...] é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades (IBGE, 2002).
Esse conceito foi decisivo para se repensar as dimensões do desenvolvimento e para a conscientização da sociedade, questionando se as práticas econômicas e sociais desenvolvidas até então não estavam limitando a capacidade dos ambientes naturais de suportar a vida no planeta. 
Assim, começava a se discutir se o modelo de desenvolvimento adotado seria insustentável ao logo do tempo, comprometendo a vida de futuras gerações (WEBER, 1997).
  • Foi com esse pano de fundo que a revista São Paulo em Perspectiva (FUNDAÇÃO SEADE, 1989) publicou seu primeiro volume referente aos problemas ambientais. Os artigos chamam a atenção para a ocupação não-planejada e predatória do Estado de São Paulo, para o conflito gerado a partir do uso da água nas diferentes bacias hidrográficas do Estado e para o uso indiscriminado de agrotóxicos no combate de pragas agrícolas. 
Os textos alertam também para o processo de transformações da metrópole, contribuindo para a deterioração da qualidade de vida da população, sobretudo de sua saúde. Ficava cada vez mais óbvia a gravidade dos altos níveis de poluição hídrica e atmosférica em diversos municípios da Região Metropolitana de São Paulo, além da formação das ilhas de calor e das enchentes, em grande parte provocadas pela escassez de áreas verdes.
  • Por trás do alerta, entretanto, os artigos trazem a idéia de que, à medida que os problemas ambientais se agravavam, havia necessidade de se desenvolver metodologias e teorias que enxergassem o objeto de pesquisa de forma mais ampla. 
Os textos relatam que os problemas anteriormente analisados e tratados de forma pontual tanto do ponto de vista científico, como do ponto de vista da administração pública (poluição hídrica e atmosférica, desmatamento, etc.), começavam a ser vistos a partir de uma óptica distinta. Sobretudo porque a solução para grande parte dos problemas ambientais não estava somente na eficiente implantação de algumas leis restritivas. 
  • Apesar da importância da tecnologia, das restrições ambientais e das multas aplicadas às ações que tinham impacto negativo sobre o meio ambiente, um outro componente não poderia ser descartado: a gestão a longo prazo, que em grande parte depende dos variados tipos de relações microssociais. 
Assim, aplicar o mesmo tipo de multa a um agricultor do Estado de São Paulo ou a uma madeireira no Estado do Pará, sem um suporte informacional e, posteriormente, um incentivo a atividades sustentáveis, dificilmente resolveria o problema a longo prazo. Na tentativa de solucionar esses impasses (muitos presentes até hoje), o foco voltou-se para a gestão, sendo a qualidade do meio ambiente vista a partir de um enfoque territorial.

Três fases rumo ao desenvolvimento sustentável: 
Do reducionismo à valorização da cultura

Gestão e articulação territorial:
  • A elaboração da Agenda 21, no início da década de 90, contribuiu para impulsionar a criação de abordagens territoriais a partir de redes de comunicação, buscando-se soluções para os problemas referentes à sustentabilidade e à tentativa de conciliar o crescimento econômico com o desenvolvimento. Os princípios do desenvolvimento sustentável formaram a base da Agenda 21, um documento aprovado por mais de 180 países durante a conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente no Rio de Janeiro, em 1992. 
Desde então, esses preceitos têm sido progressivamente incorporados à agenda de numerosos países, principalmente no âmbito local. Assim, ampliou-se a consciência de que os problemas ambientais não são assunto de um setor restrito da economia ou da sociedade nem se restringem aos danos causados ao ambiente físico natural, mas envolvem as relações sociais em um determinado território.
  • Como reflexo da Agenda 21, surgiu uma grande necessidade de geração e divulgação de informações para a resolução de problemas locais. Um dos melhores exemplos de ações resultantes dessa percepção são os programas estaduais de gerenciamento de microbacias hidrográficas, introduzidos tanto no Estado de São Paulo como em outros Estados brasileiros. 
De acordo com essas iniciativas, a responsabilidade de gerenciamento dos recursos hídricos de uma região está a cargo das agências estaduais de meio ambiente e recursos hídricos e também dos municípios, representados por governos locais e agentes da sociedade civil. Embora o incentivo às iniciativas locais por si só não seja suficiente, sem sólidas estruturas locais participativas e democratizadas não há financiamentos externos ou de instituições centrais que produzam resultados efetivos.
  • A idéia do desenvolvimento local transferiu o foco de atenção da poluição para a gestão, da ênfase na molécula poluidora para a educação ambiental e da técnica de comando-controle para as políticas territoriais. 
A transição para uma abordagem territorial e informacional da sustentabilidade é extremamente importante para a eficiência na geração e implantação de políticas públicas, pois o potencial de desenvolvimento de um país depende, principalmente, de sua capacidade cultural de pensar de forma endógena sobre seus futuros desejáveis (SACHS, 2001). 
  • Essa característica, por sua vez, está ligada ao grau de percepção, ao conhecimento e à consciência que a sociedade tem de sua história, sua situação presente e seu rumo futuro. Tal estado de consciência coletiva requer que os indivíduos enxerguem suas responsabilidades por fazerem parte de um conjunto maior de ações, como acontece com as propostas de desenvolvimento local. Idealmente, essa capacidade impulsiona a geração de políticas públicas nas mais diferentes esferas do desenvolvimento. 
Na maioria das vezes, no entanto, uma combinação de fatores históricos e culturais faz com que os indivíduos privilegiem sua sobrevivência ou suas necessidades individuais, em vez de tomarem parte em um todo, o que diminui a eficiência da criação e implantação das políticas públicas.
  • Outro mérito referente às políticas territoriais reside na possibilidade de promoção da convivência com a natureza. A conservação da biodiversidade não pode ser equacionada com a opção do não-uso dos recursos naturais. Por importante que seja, a instituição das reservas naturais praticamente intocadas é apenas uma das estratégias de conservação. 
O conceito de reservas de biodiversidade da Unesco nasceu da compreensão de que a conservação da biodiversidade deve estar em harmonia com as necessidades das sociedades que vivem em determinado ecossistema (SACHS, 2002). Daí a necessidade de se enxergar essas regiões a partir do ponto de vista da gestão do território, que inclui os recursos naturais, as atividades econômicas, o acesso às condições básicas de saúde e educação e o respeito a costumes e tradições.
  • Ainda vive-se uma fase que requer maior aplicação das políticas territoriais, pois em diversas áreas esse tipo de enfoque ainda não desempenhou seu papel por completo. Muitas regiões rurais paulistas, por exemplo, poderiam beneficiar-se enormemente desse tipo de gestão. É importante lembrar que o meio rural não se restringe à agricultura, mas constitui efetivamente um território permeado por relações sociais, não se reduz a um setor da economia. 
A valorização do meio rural pode ser um dos caminhos importantes para atenuar os explosivos problemas que atingem hoje as cidades, sobretudo nos países e nas regiões onde o peso da população que vive no campo é importante. A valorização do campo não implica a rejeição do papel dinamizador que as cidades desempenham na sociedade (ABRAMOVAY, 2000; VEIGA, 2002). 
  • Significa incentivar, por meio de políticas territoriais, um grupo de municípios rurais a se articular e definir seu rumo, vivendo, conservando e recuperando suas paisagens menos afetadas pelas mazelas do desenvolvimento. Isso é muito diferente de pregar uma forma de "volta ao meio rural" ou de sugerir a fixação do homem no campo. A chave está na ampliação dos horizontes da vida social, econômica e cultural dos habitantes desse meio, o que leva à terceira fase rumo ao desenvolvimento sustentável: a cultura.
A cultura como fator de sustentabilidade:
  • A ênfase na cultura como fator de sustentabilidade ainda é muito recente especialmente nas políticas públicas. O seu desenvolvimento pode ser um importante fator no período em que vivemos, pois não se restringe a um segmento específico, mas permeia diversas ações da sociedade; lida com a criatividade que transita entre o novo e o antigo e impulsiona a sociedade a construir um quadro de referência com relação a seu futuro. 
Apesar de raramente pensadas em termos de sustentabilidade, as políticas culturais são de suma importância, porque suas ferramentas de intervenção geralmente se aproximam da subjetividade humana, o terceiro registro ecológico sugerido por Guattari (1990) e componente fundamental da articulação ético-política capaz de conciliar o desenvolvimento ao crescimento econômico.
  • Sabe-se que a cultura muda muito lentamente. Apesar de a perspectiva do desenvolvimento sustentável pressupor uma atitude psicológica essencialmente futurista, é praticamente impossível que qualquer geração seja capaz de prever todas as contingências implicadas na evolução cultural. 
Mas, à medida que o indivíduo se conscientiza da repercussão de seus atos nas gerações futuras e se preocupa com isso, desenvolve-se uma preocupação através das gerações capaz de enxergar uma responsabilidade comum. Para alcançar esse estado ideal, entretanto, o desenvolvimento cultural deve partir do reconhecimento dos cenários nos quais os atores sociais interagem, constroem espaços, mudam os valores e os "olhares" sobre a vida em sociedade. 
  • A partir daí, incentivar o desenvolvimento da cultura não corresponde a apenas realizar produtos com viabilidade de mercado que dêem visibilidade a empresas, muito menos a vender a cultura como um produto a ser consumido. Trata-se de compreender a cultura como um processo de criação de significados que oferecem sentido ao modo de vida das comunidades humanas.
Pensar na cultura como fator de desenvolvimento significa valorizar identidades individuais e coletivas, promover a coesão em comunidades e levar em consideração que as características da cultura podem ser um fator de crescimento em determinado território, como é o caso de diferentes regiões rurais com relação aos seus produtos agrícolas, seus costumes e paisagens aproveitadas pelo turismo. Assim, não há fronteiras territoriais. 
  • A cultura é tão essencial em grandes metrópoles como em áreas rurais. Em cada local, diferentes agentes são envolvidos, com tarefas e formatos variados e, conseqüentemente, resultados distintos. Mas os processos são sempre muito similares, envolvendo, por meio de parcerias de médio e longo prazos, os agentes públicos, privados e do terceiro setor.
O papel fundamental da cultura pode beneficiar o desenvolvimento de outras políticas públicas, acentuando sua eficiência, tanto nos aspectos econômicos, como nas dimensões social e ambiental (RUIZ, 2003). Diversos trabalhos desenvolvidos pela Unesco (1995) ressaltam que, especialmente nos chamados "territórios periféricos" da Europa Oriental, o desenvolvimento não caminha sem uma especial ênfase ao desenvolvimento da cultura local, ou seja, é preciso reforçar a consciência dessas culturas em relação ao seu desenvolvimento.
Hoje, as políticas culturais devem contribuir para gerar pertencimentos a partir do resgate da auto-estima individual e coletiva. Sem a auto-estima não é possível o desenvolvimento humano [...] e sem o pertencimento, não há o desenvolvimento integral,
ressalta o Instituto Pólis (FARIA, 1999) no relatório produzido a partir de um seminário em São Paulo, que apresentou como diversas ações culturais e artísticas são capazes de beneficiar o desenvolvimento humano, comunitário e municipal. A área produtiva, as redes de infra-estrutura e de serviços não funcionam de maneira adequada se não houver investimento no ser humano, em sua formação, saúde, cultura, lazer e informação.
  • Incentivar o desenvolvimento da cultura em um país como o Brasil ainda é visto como um elemento supérfluo, de "perfumaria", e pode ser considerado um trabalho dificílimo e infinito, devido a verbas restritas, incapazes de atender à efervescência de incontáveis manifestações. 
Mas a proposta fica mais clara se pensarmos que o desenvolvimento e sua conciliação com o crescimento econômico não se darão a partir da implantação de um elemento específico da cultura, mas sim pela interação entre diferentes centros de influência (as artes, as escolas, as instituições públicas e privadas, por exemplo) e pelas políticas públicas, como balizadoras e direcionadoras das ações governamentais, certamente capazes de impulsionar o aperfeiçoamento e a interação desses centros.
  • O incentivo à formação de público para a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Pinacoteca e o Museu de Arte Sacra na capital paulista, a recuperação da Estação da Luz e a implantação de um museu destinado à língua portuguesa, além das diversas ações da Secretaria de Estado da Cultura procurando transformar São Paulo em um Estado de leitores são exemplos de interação entre esses centros de influência. 
Eles demonstram que as políticas culturais podem e devem desempenhar um papel significativo na promoção da sustentabilidade, o qual pode ser entendido como a recriação de uma teia de comunicação no espaço público.
  • Existem diferentes frentes nas quais as políticas públicas culturais podem agir, segundo essa óptica. Os trabalhos artísticos compõem uma delas. A arte, entretanto, é exemplar quando confere um novo tipo de signo à existência e
opera transformações a partir de linguagens que valorizam a vida como um todo e criam um outro discurso, diferente daquele que já não sabe comunicar-se ou comunica-se mal com a sociedade(FARIA, 1999, p. 15).
A arte é constituída da vida social e impulsiona relações entre pessoas e grupos, renovando vivências, laços de solidariedade, criando imagens e poéticas imprescindíveis para o conhecimento de si mesmo e do outro e contribuindo para a criação de um rico imaginário local apoiado nas raízes e na criatividade coletivas.
  • Ainda pouco explorados nas ações promotoras da sustentabilidade, os trabalhos artísticos que tocam o imaginário e a subjetividade humana fazem parte de um importante registro ecológico de nossas ações. Isso porque as novas idéias são visões imaginativas originais, não somente porque elas envolvem imagens particulares inéditas, mas no sentido de que envolvem mudanças na nossa visão de mundo, a forma geral pela qual percebemos a vida. 
A imagem da máquina, por exemplo, transformou a visão de mundo profundamente durante a Renascença, sobretudo porque máquinas estão sob o controle humano. E a idéia de se poder separar essa máquina (o mundo) em partes é o que fez a ciência parecer possível. E precisava parecer possível na imaginação antes que qualquer pessoa começasse efetivamente a praticá-la (MIDGLEY, 2001). O mesmo pode ser válido para o desenvolvimento sustentável: primeiro é preciso imaginá-lo possível.

Próximos passos:
  • Se uma conciliação entre o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável ainda parece remota, enxergar e compreender o caminho percorrido pode ser importante, principalmente para a formulação de políticas públicas que tenham como propósito incentivar formas sustentáveis de desenvolvimento. 
Esse percurso indica que é necessária uma visão abrangente da sustentabilidade e que as políticas públicas sejam integradas dentro de uma perspectiva de longo prazo de gestão territorial, na qual a cultura seja um importante elemento impulsor. Em outras palavras, além de impor leis restritivas, as políticas públicas devem procurar criar um ambiente favorável à sustentabilidade ao direcionarem as ações do Estado referentes a seus mais diversos setores de atuação.
  • Como o século XXI pede urgência na derrubada de contradições que marcaram o final do século passado, não se pode tardar a direcionar o foco das políticas públicas para a sustentabilidade e para a geração de informações, ambas partes de um conjunto de objetivos que pautam e condicionam a ação governamental. 
À medida que as políticas públicas contemplarem propostas que articulem o meio ambiente, a sociedade e a subjetividade humana, o abismo que separa o crescimento econômico do desenvolvimento poderá não parecer tão grande e a sustentabilidade, não tão distante.

Referências bibliográficas:

ABRAMOVAY, R. Funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento contemporâneo. Rio de Janeiro: Ipea, jan. 2000. (Texto para discussão, n.702). [ Links ]
FARIA, H. (Org.). Seminário Desenvolver-se com Arte. São Paulo: Instituto Pólis, 1999. [ Links ]
FUNDAÇÃO SEADE. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 3, n. 4, out./dez. 1989. [ Links ]
GUATTARI, F. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990. [ Links ]
IBGE. Indicadores de desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: 2002. [ Links ]
MIDGLEY, M. Science and Poetry. London: Routledge, 2001. [ Links ]
MORIN, E. O método. São Paulo: Editora Sulina, 2001. 5 v. [ Links ]
RUIZ, J. P. Cultural Development, Public Policies and Local Strategies. In: Local Cultural Strategies Development in South-East Europe, Building on Practice and Experience. Background paper. Policies for Culture Regional Workshop. Bucareste, 8-10 Maio, 2003. [ Links ]
SACHS, I. Repensando o crescimento econômico e o progresso social: o papel da política. In: ABRAMOVAY, R. et al. (Orgs.). Razões e ficções do desenvolvimento. São Paulo: Editora Unesp/Edusp, 2001. [ Links ]
__________. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. [ Links ]
UNESCO. World Commission on Culture and Development. Relatório Our Creative Diversity. Paris: Unesco Publishing, 1995. [ Links ]
VEIGA, J. E. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas: Autores Associados, 2002. [ Links ]
WEBER, J. Gestão dos recursos renováveis: fundamentos teóricos de um programa de pesquisa. In: VIEIRA, P.F.; WEBER, J. (Org.). Gestão dos recursos naturais renováveis e desenvolvimento: novos desafios para a pesquisa ambiental. São Paulo: Editora Cortez, 1997. [ Links ]

Três fases rumo ao desenvolvimento sustentável: 
Do reducionismo à valorização da cultura

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Sustentabilidade social e ambiental na agricultura familiar

Sustentabilidade social e ambiental na agricultura familiar

Ivair Gomes
  • A alta flexibilidade de adaptação a diferentes processos de produção e a variedade de fontes de renda tornaram a agricultura familiar elemento fundamental da modernização agrícola e, particularmente, de certas cadeias agroindustriais. 
A discussão sobre a importância e o papel da agricultura familiar vem ganhando força impulsionada através de debates embasados no desenvolvimento sustentável e também na geração de emprego e renda e na segurança alimentar. 
  • Também é premente, a necessidade de resgatar a dívida social com a agricultora familiar em decorrência da agricultura moderna. Sabendo-se ainda que a produção agrícola é sempre, em maior ou menor grau, assegurada pela exploração familiar e que o produtor familiar não possui único padrão cultural, social e econômico, mas difere entre si intensamente, faz-se necessário estudá-lo em suas várias formas. 
A capacidade (ou incapacidade) de sustentação e reprodução deste agricultor com a prática agrícola que exerce e no contexto sócio-econômico a que ele está inserido poderá mostrar um caminho a ser seguido por políticas públicas e uma base para futuros estudos acerca do produtor, da produção familiar e seu posicionamento quanto à agricultura sustentável.
  • Ao pensar esse agricultor, algumas questões vêm à tona: a prática da agricultura familiar constitui possível opção ao sistema depredador da agricultura moderna? É possível a continuidade dos agricultores familiares estudados praticando a agricultura nos moldes que vêm fazendo desde os primeiros plantios de videiras e da modernização conservadora? 
As relações existentes entre as unidades familiares aqui estudadas e os modelos teóricos propostos por LAMARCHE (1998), com suas noções de lógica familiar e dependência, permitirão caracterizar as unidades familiares dentro desses pressupostos. Buscou-se com este trabalho: 
  • Estudar a agricultura familiar das comunidades rurais de Bocaina, Pedra Branca e Bom Retiro, no município de Caldas/MG, que é exercida, ainda, com moldes na agricultura moderna ou convencional; ƒ 
  • Detectar e analisar os parâmetros e indicadores de sustentabilidade sócio-ambiental nos sistemas estudados e compreender, de forma integrada, as relações existentes entre esses agricultores familiares; ƒ 
  • Comparar as comunidades rurais do ponto de vista de manejos, tanto sustentáveis quanto não sustentáveis
Este estudo está baseado nas seguintes hipóteses: ƒ
  • O bem-estar social da comunidade e a preservação do meio ambiente são possíveis mediante manejos sustentáveis dos sistemas agrícolas familiares; ƒ 
  • A agricultura familiar é aquela em que a produção poderá continuar a suprir as atuais necessidades capitalistas sem afetar irremediavelmente o meio ambiente.
O espaço estudado: 
  • O município de Caldas está dentro da bacia do Rio Grande, região sul de Minas Gerais, cuja sede municipal esta localizada na latitude 21º 55’ 25” sul e longitude 46º 23’ 10’’ oeste, possuindo área de 714 km2 e população total de 12776 habitantes, sendo 7232 residindo na área urbana e 5534 na área rural (IBGE, 2000). 
Localizado na vertente leste do planalto de Poços de Caldas, que pertence à borda ocidental da serra da Mantiqueira, o município de Caldas apresenta significativa variação altimétrica, chegando ao máximo de 1700 m na serra da Pedra Branca (CHRISTOFOLETTI, 1970). 
  • Ao sul do município localizam-se as comunidades rurais de Pedra Branca, Bom Retiro e Bocaina, onde predomina a exploração familiar com tradição cultural ligada à produção de frutas principalmente, à viticultura e à produção artesanal de vinhos e doces de frutas, produtos básicos de alimentação: feijão e milho e a criação de gado para leite e bezerros.
Partindo do conhecimento prévio dessas comunidades rurais, detectou-se na área agricultura familiar com direcionamento de plantios em: fruticultura, videiras e culturas anuais de milho, feijão e batata. Também está presente uma pecuária voltada tanto para a produção de leite (venda ou consumo in natura e fabricação de doces e queijos) quanto para a cria e recria de bezerros. 
  • A produção artesanal está presente nos sistemas agrícolas, através da produção de vinhos, doces de leite e de frutas de época e na criação de animais e obtenção de seus subprodutos. Essa produção é colocada para a venda aos turistas na sede do município, no balneário de Pocinhos do rio Verde e na sede do estabelecimento produtor, proporcionando complementação à renda dos agricultores familiares.
Alguns aspectos do Desenvolvimento sustentável:
E da sustentabilidade: 
  • O desenvolvimento sustentável e a sustentabilidade são conceitos que para manterem os objetivos propostos foram analisados separadamente. Individualmente são conceitos diferentes, já que determinado sistema pode ter parâmetros e indicadores sustentáveis, mas não ser, necessariamente, detentor de indicadores que propiciem seu desenvolvimento.
O desenvolvimento sustentável:
  • O conceito de desenvolvimento, de acordo com DENARDI (et al., 2000), possui longa história de construção, sendo ainda tema de debates e controvérsias. Segundo este autor, entre o final da Segunda Grande Guerra Mundial e meados dos anos sessenta, não se fazia distinção entre desenvolvimento e crescimento econômico. 
No entanto, as condições de vida de muitas populações não melhoravam, até pioravam, mesmo quando os seus países haviam alcançado elevadas taxas de crescimento. Estes fatos provocaram “grande insatisfação com essa visão do desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico” (DINARDI et al., 2000). 
  • A idéia de desenvolvimento foi paulatinamente incorporando uma série de aspectos sociais: emprego, necessidades básicas, saúde, educação, longevidade. Mais recentemente, percebeu-se que as bases ambientais de qualquer progresso futuro poderiam estar sendo comprometidas por crescimento econômico predatório de recursos naturais e altamente poluidores (DENARDI et al., 2000). 
O desenvolvimento não é somente a satisfação das necessidades das pessoas, mas está ligado às suas capacidades. Neste sentido, ele “está nas pessoas, não nos objetos” (DENARDI et al., 2000). Já o termo desenvolvimento sustentável é relativamente recente e seu significado ainda está em construção. 
  • Porém várias são as visões propostas: “desenvolvimento sustentável significa atender às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender suas próprias necessidades” (COMISSÃO MUNDIAL PARA O MEIO AMBIENTE E O DESENVOLVIMENTO – CMMAD, 1988:28).
“o desenvolvimento sustentável deve conciliar, por longos períodos, o crescimento econômico e a conservação dos recursos naturais” (EHLERS, 1999:103).
“…está associado ao uso, equilíbrio e dinâmica dos recursos da biosfera no presente e no futuro…” (MOREIRA, 1999:196)
“… o desenvolvimento para ser sustentável, deve ser não apenas economicamente eficiente, mas também ecologicamente prudente e socialmente desejável” (ROMEIRO, 1998:248)
Várias entidades internacionais escolhem o desenvolvimento sustentável para indicar a nova filosofia do desenvolvimento que combina eficiência econômica com justiça social e prudência ecológica (BRÜSEKE, 1998:35). 
  • O desenvolvimento sustentável também é entendido como processo em constante mudança quanto à dinâmica dos investimentos, inovações (que devem cumprir demandas atuais e futuras) e exploração dos recursos (SACHS, 1990:474)
Como todos os novos paradigmas, o conceito de desenvolvimento sustentável passa também, por questionamentos. Uma dessas críticas é formulada por MOREIRA (1999:177) quando afirma que o desenvolvimento sustentável “traz implícita a idéia de que a solução por meio da técnica é possível. 
  • E mais, que o problema é apenas a questão do desenvolvimento de tecnologias adequadas e que nada garante que os benefícios deste paradigma trarão ganhos para os “setores sociais historicamente subalternos, como é o caso da agricultura familiar”. 
O sustentável ou a sustentabilidade continuará carregando elementos conservadores, ao não se constituir como um questionamento da ordem social (MOREIRA, 1999:178). Contrapondo a essas críticas EHLERS (1999:111) afirma que “a erradicação da pobreza e da miséria deve ser um objetivo primordial de toda humanidade” e que a prática sustentável envolve aspectos sociais, econômicos e ambientais que devem ser entendidos conjuntamente. A técnica é meio necessário à condução do desenvolvimento sustentável.Vários são os objetivos a serem alcançados pelo desenvolvimento sustentável quanto a práticas agrícolas, destacando-se: 
  • ƒ “a manutenção por longo prazo dos recursos naturais e da produtividade agrícola; ƒ 
  • o mínimo de impactos adversos ao ambiente; ƒ 
  • retornos adequados aos produtores; ƒ otimização da produção com mínimo de insumos externos; ƒ 
  • satisfação das necessidades humanas de alimentos e renda; ƒ 
  • atendimento das necessidades sociais das famílias e das comunidades rurais” (VEIGA, 1994:7). 
No desenvolvimento da agricultura sustentável a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) e o INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) fazem algumas recomendações. 
  • Primeiramente, faz-se necessário implementar uma política científica e tecnológica “especialmente em sistemas integrando agricultura e pecuária, em produtos tradicionais” e nos produtos dependentes de muita mão-de-obra (FAO/INCRA, 1994:10). 
Também são recomendadas reestruturações dos serviços de extensão rurais, a promoção da integração vertical agricultura-pecuária, o incentivo à rotação de culturas, a indução de práticas de controle integrado de pragas, maior utilização da adubação orgânica, a conservação do solo através, dentre outros, de práticas culturais como a cobertura verde e finalmente, é necessário desenvolver e apoiar a utilização de sistemas agro-florestais (FAO/INCRA, 1994:10-11). 

Critérios de sustentabilidade
  • Para se compreender os sistemas agrícolas em nossos dias, temos que ter em mente sua sustentabilidade, pois “a agricultura é afetada pela evolução dos sistemas socioeconômicos e naturais” (ALTIERI, 2000:16). 
De acordo com CAVALCANTI (1998) sustentabilidade significa a “possibilidade de se obterem continuamente condições iguais ou superiores de vida para um grupo de pessoas e seus sucessores em dado ecossistema” (CAVALCANTI 1998:161). 
  • Ao pensar a sustentabilidade sob a ótica do retorno aos primórdios humanos, em retorno ao modo de vida selvático dos índios brasileiros, CAVALCANTI (1998) assevera que “os índios da Amazônia nos oferecem um caminho para a sustentabilidade” já que a procura por essa sustentabilidade “resume-se à questão de se atingir harmonia entre seres humanos e a natureza”. 
Ao contrário do “homem civilizado” o índio vive de maneira sustentável com a natureza, com estilo de vida baseado “exclusivamente em fontes renováveis de energia” (CAVALCANTI, 1998:165). A sustentabilidade, de acordo com SACHS (1991), “constitui-se num conceito dinâmico, que leva em conta as necessidades crescentes das populações, num contexto internacional em constante expansão” (SACHS, 1990:235-236). 
  • Para ele, a sustentabilidade tem como base 5 dimensões principais que são as sustentabilidades social, cultural, ecológica, ambiental e econômica, A sustentabilidade social está vinculada ao padrão estável de crescimento, melhor distribuição de renda com redução das diferenças sociais. 
Já a sustentabilidade econômica está vinculada ao “fluxo constante de inversões públicas e privadas” além da destinação e administração corretas dos recursos naturais. A dimensão sustentabilidade ecológica está vinculada ao uso efetivo dos recursos existentes nos diversos ecossistemas com mínima deterioração ambiental. 
  • A sustentabilidade geográfica está ligada à má distribuição populacional no planeta, sendo “necessário buscar uma configuração rural urbana mais equilibrada”. A sustentabilidade cultural que procuraria a realização de mudanças em harmonia com a continuidade cultural vigente (SACHS, 1990:235-236). 
Em 2000 este mesmo autor acrescenta mais quatro dimensões ou critérios de sustentabilidade: ambiental, territorial, política nacional e política internacional. A sustentabilidade ambiental permitiria que ecossistemas naturais realizem autodepuração. A territorial visa à eliminação de disparidades inter-regionais, a destinação igualitária de investimentos públicos e a “conservação da biodiversidade pelo ecodesenvolvimento”. 
  • A sustentabilidade no âmbito das políticas nacionais passaria por “nível razoável de coesão social”, democracia e capacidade institucional do Estado “para implementar o projeto nacional”. Quanto a políticas internacionais a sustentabilidade passaria pela garantia de paz assegurada pelo fortalecimento da ONU, controle do sistema financeiro internacional, verdadeira cooperação científica e diminuição das disparidades sociais norte-sul (SACHS, 2000:86-88)
Outros autores apresentam diferentes formas de análise da sustentabilidade, como CHAMBERS e CONWAY (1992), que a dividem em dois grupos: o social e o ambiental. “The sustainability of livelihoods raises many questions. These fall into two groups: whether a livelihood is sustainable environmentally, in its effects on local and global resources and other assets: an whether it is sustainable socially, that is, able to cope with stress and shocks, and retain its ability to continue and improve. Sustainability is thus a function of how assets and capabilities are utilized, maintained and enhanced so as to preserve livelihoods” (CHAMBERS e CONWAY, 1992:12). 
  • A sustentabilidade ambiental estaria ligada, de acordo com o pensamento tradicional, à preservação ou aprimoramento da base de recursos produtiva, principalmente para as gerações futuras. Ainda segundo CHAMBERS e CONWAY (1992:12), na sustentabilidade local, a questão seria se atividades sustentáveis manteriam e aumentariam, ou esvaziariam e degradariam a base natural de recursos? Globalmente, a questão seria saber se atividades sustentáveis trariam contribuições positivas ou negativas, em longo prazo, ao meio ambiente? 
Localmente o principal desafio é melhorar a qualidade de vida, de maneira sustentável, intensificando o uso de recursos nas áreas rurais do sul pobre. Globalmente o desafio principal é reduzir a insustentabilidade do estilo de vida, especialmente nas áreas urbanas dos países ricos. 
  • Ainda de acordo com CHAMBERS e CONWAY (1992), para se fazer completa, a sustentabilidade ambiental tem que ser complementada pela sustentabilidade social. Sustentabilidade social, de acordo com esses autores, se refere não somente ao que o ser humano pode ganhar, mas à maneira como pode ser mantida decentemente sua qualidade de vida. Isto gera duas dimensões: uma negativa e outra positiva. 
A dimensão negativa é reativa como resultado de tensões e choques e a dimensão positiva é construtiva, aumentando e fortalecendo capacidades, gerando mudanças e assegurando sua continuidade. 
  • A sustentabilidade de indivíduos, grupos e comunidades está sujeita a tensões e choques. Esta vulnerabilidade tem dois aspectos: um externo, em que as tensões e choques são o sujeito, e outro interno, que são sua capacidade de resistir. 
As tensões são tipicamente contínuas e cumulativas, previsíveis e dolorosas, como escassez sazonal, crescimentos populacionais e decréscimos de recursos, enquanto choques são eventos tipicamente súbitos, imprevisíveis e traumáticos, como incêndios, inundações e epidemias. 
  • Qualquer definição de sustentabilidade tem que incluir a habilidade para evitar, ou mais comumente resistir, a essas tensões e choques. Já a dimensão positiva da sustentabilidade social está em sua capacidade para prever, adaptar e aproveitar mudanças no ambiente físico, social e econômico (CHAMBERS e CONWAY, 1992). 
Esses autores dão base para BICALHO (1998) colocar três indicadores: capacidade, eqüidade esustentabilidade, para operacionalização do desenvolvimento sustentável. 
  • Esses três indicadores devem ser atendidos pela “operacionalização do desenvolvimento rural sustentável (…) alcançando o objetivo máximo, a geração e o suporte de modos de vida sustentáveis” (BICALHO, 1998:178). 
A capacidade está relacionada às funções básicas das pessoas como nutrição adequada, vestimentas confortáveis e boa qualidade de vida. Esta qualidade de vida é entendida como a capacidade de o grupo escolher e avaliar suas ações. 
  • A eqüidade refere-se à distribuição menos desigual dos bens, habilidades e oportunidades. Inclui também o fim da discriminação às mulheres e às minorias, além do fim da miséria rural ou urbana. E finalmente a sustentabilidade que está ligada à nova visão global acerca da poluição, desmatamento, superexploração de recursos não-renováveis, além da degradação ambiental. 
Fundamentado no referido anteriormente e em função das características dos produtores estudados, a sustentabilidade será entendida, para fins deste estudo, de acordo com o proposto por CHAMBERS e CONWAY (1992). “…we will use sustainability in a more focused manner to mean the ability to maintain and improve livelihoods while maintaining or enhancing the local and global assets and capabilities on which livelihoods depend” (CHAMBERS e CONWAY, 1992:12). 
  • Assim a sustentabilidade nas comunidades pesquisadas estará vinculada à capacidade dos agricultores familiares conservarem ou aumentarem sua qualidade de vida mantendo e garantindo recursos para as próximas gerações
A agricultura sustentável:
  • A humanidade sempre interagiu com o meio ambiente e conseqüências negativas, de maior ou menor grau, sempre aconteceram, porém elas têm chegado a níveis elevadíssimos atualmente. Provavelmente, em nenhuma outra atividade humana, exista interação tão grande entre o ser humano e a natureza como na agricultura e sua conseqüência atual é que, ali, acabam por ocorrer grandes problemas ambientais (BRANDENBURG, 1999). 
Faz necessário então criar opção ao sistema agrícola depredador que ora impera, a agricultura sustentável é opção que se viabiliza no momento. A agricultura sustentável, de acordo com EHLERS (1999), “mais do que um conjunto definido de práticas, a agricultura sustentável é hoje apenas um objetivo. O que varia é a expectativa em relação ao teor das mudanças contidas nesse objetivo…” (EHLERS, 1999). 
  • Atualmente agricultores, técnicos e pesquisadores formaram o movimento denominado, na agricultura, alternativo. Essa agricultura é hoje considerada sustentável (ALTIERI, 1989) e indica a construção de caminho baseado nas condições ecológicas e socioeconômicas da agricultura. O agricultor alternativo, ou sustentável, não privilegia exclusivamente a razão econômica. Também não releva primordialmente os princípios éticos da questão ambiental. 
Trata-se de: 
“um agricultor com dupla orientação, que considera a razão técnico-econômica e ao mesmo tempo a questão ambiental, envolvendo outros elementos de ordem cultural ou subjetiva, isto é, um agricultor que tende a construir um projeto de vida segundo uma razão socioambiental ou eco-social”. Nesse sentido, as mudanças não tenderiam a reorganizar a agricultura segundo um novo paradigma de mudanças, mas seriam; “uma forma de organização da produção que ao incluir elementos de um outro padrão técnico de produção forma um outro personagem na agricultura: o agricultor alternativo-sustentável” (BRANDENBURG, 1999:264).
Para a conversibilidade da agricultura convencional em agricultura alternativa ou sustentável são necessárias duas ordens de fatores: uma de caráter social e político e outra de caráter técnico. 
  • Na primeira ordem estaria o “suporte organizacional, que organiza internamente o apoio ao movimento” e, na segunda ordem, estaria o caráter técnico, que se efetiva após estudo da situação de tal maneira que “permita combinar rendimentos econômicos e equilíbrio na gestão de recursos naturais” (BRANDENBURG, 1999:271). 
Na formação da agricultura sustentável a busca por “maior eficiência dos sistemas de produção agrícola deve ser compatível e coerente com cada realidade ecológica” (COSTA, 1993). Faz-se necessária a utilização mais eficaz dos recursos naturais para que estes não sejam degradados em médio e longo prazos. Salientando a necessidade de sustentabilidade ecológica de longo prazo, ALTIERI destaca que os sistemas de produção devem: 
  • ƒ “Reduzir o uso de energia e recursos e regular a entrada total de energia de modo que a relação entre saídas e entradas seja alta; ƒ 
  • Reduzir as perdas de nutrientes detendo a lixiviação, o escorrimento e a erosão, e melhorando a reciclagem de nutrientes com o uso de leguminosas, adubação orgânica e compostos, e outros mecanismos eficientes de reciclagem; ƒ 
  • Incentivar a produção local de cultivos adaptados ao meio natural e socioeconômico; ƒ 
  • Sustentar um excedente líquido desejável, preservando os recursos naturais, isto é, minimizando a degradação do solo;
  • Reduzir custos e aumentar a eficiência e a viabilidade econômica das pequenas e médias unidades de produção agrícola, promovendo, assim, um sistema agrícola potencialmente resiliente” (Altieri, 2000:59/60) 
A produção agrícola sustentável, de acordo com GLIESSMAN (2000), é possuidora de base ecológica. Onde a produção seja “capaz de, perpetuamente, colher biomassa de um sistema, porque sua capacidade de se renovar ou ser renovado não é comprometida” (GLIESSMAN, 2000:52). 
  • Como não é possível demonstrar no presente o que é perpétuo, somente o futuro poderá comprovar verdadeiramente a sustentabilidade. É “impossível se saber, com certeza, se uma determinada prática é, de fato, sustentável ou se um determinado conjunto de práticas constitui sustentabilidade” (GLIESSMAN, 2000:53). Ao presente cabe demonstrar que a prática está se afastando da sustentabilidade.
Para ser sustentável a agricultura deveria:
  • ƒ “Ter efeitos negativos mínimos no ambiente e não liberaria substâncias tóxicas ou nocivas na atmosfera, água superficial ou subterrânea; ƒ 
  • Preservaria e recomporia a fertilidade, preveniria a erosão e manteria a saúde ecológica do solo; ƒ 
  • Usaria água de maneira que permitisse a recarga dos depósitos aqüíferos e satisfizesse as necessidades hídricas do ambiente e das pessoas; ƒ 
  • Dependeria, principalmente, de recursos de dentro do agroecossistemas, incluindo comunidades próximas, ao substituir insumos externos por ciclagem de nutrientes, melhor conservação e uma base ampliada de conhecimento ecológico; ƒ 
  • Trabalharia para valorizar e conservar a diversidade biológica, tanto em paisagens silvestres quanto em paisagens domesticadas; ƒ 
  • Garantiria igualdade de acesso a práticas, conhecimento e tecnologias agrícolas adequados e possibilitaria o controle local dos recursos agrícolas” (GLIESSMAN, 2000:53/54) 

Sustentabilidade social e ambiental na agricultura familiar

Para sua realização a agricultura sustentável requer:
  • “uma combinação de cultivos mais diversificada, não de monoculturas, mas de lavouras com pecuária e pastagens, com plantação de feno e gramíneas com leguminosas combinadas, como o cultivo de aveia e cevada; ƒ 
  • Uma redução, em todos os países, principalmente os países industrializados, dos subsídios das políticas públicas, hoje dirigidos a cultivos que têm impactos adversos ao meio ambiente, em benefício de cultivos que têm impacto benigno no meio ambiente; ƒ 
  • Um redirecionamento dos incentivos ao uso de insumos predatórios, pois se há externalidades ou efeitos colaterais no seu uso, estas devem ser corrigidas com tributação” (LOPES, 1994:98). 
A produção agrícola familiar apresenta características que mostram sua força como local privilegiado ao desenvolvimento de agricultura sustentável, em função de sua tendência à diversificação, a integração de atividades vegetais e animais além de trabalhar em menores escalas (CARMO, 1998:231). 
  • Os sistemas agrícolas de produção animal e vegetal estudados nas comunidades de Pedra Branca, Bom Retiro e Bocaina possuem tais características, porém em escala menor de produção a integração é o mais forte nestes sistemas agrícolas. 
Percebe-se que ocorre combinação de culturas intercaladas, como: videiras, arroz e feijão, porém este ponto positivo sustentável, ocorre muito em função do pequeno tamanho das propriedades com plantio de videiras, e também como indicador sustentável do ponto de vista cultural, porque este cultivo foi passado de geração para geração. 
  • Outro requisito da agricultura sustentável – mal uso de insumos e defensivos químicos – é algo negativo para a sustentabilidade que ocorre nestes sistemas agrícolas.
Uma forma de tentar conhecer o grau de sustentabilidade de sistemas agrícolas está na delimitação de parâmetros e indicadores sobre sua realidade. Os parâmetros são entendidos neste estudo como “aspectos estruturadores do conjunto da vida social e da natureza” e os indicadores como “evidenciadores da capacidade de sobrevivência e reprodução do pequeno produtor rural nas comunidades estudas” (MARZALL, 1999). 
  • Neste sentido, o financiamento agrícola, por exemplo, seria parâmetro e o acesso dos produtores a este financiamento indicador. Os indicadores serão todos os itens quantificadores ou qualificadores desses parâmetros, por exemplo, o número de espécies cultivadas, acesso dos moradores à água ou tipos de insumos utilizados. 
Assim o indicador consiste numa quantificação do parâmetro. O conhecimento, a análise e a definição de parâmetros e indicadores estão diretamente ligado ao conceito de sustentabilidade e ao considerar diferentes escalas no mesmo sistema o enfoque sistêmico mostra-se essencial neste estudo. 
  • Os estudos sistêmicos de CHRISTOFOLETTI (1979) com suas relações, atributos e variáveis são elementos que podem ser parâmetros ou indicadores de sustentabilidade para os sistemas estudados. De acordo com este enfoque o número de moradores, sua idade, escolaridade, uso de energia, espécies cultivadas, produtividade, área utilizada do estabelecimento, formas de aquisição, moradia, podem ser considerados como sendo atributos/parâmetros ou variáveis/indicadores. 
Em princípio, a existência de parâmetro ou indicador no sistema não é, em si, fator suficiente para defini-lo como sustentável ou não sustentável. É necessário relativisálo em contexto mais abrangente, qualificando sua relevância e suas interações, sendo para isso forçoso conhecer o conjunto de elementos do objeto estudado 

A sustentabilidade e os sistemas agrícolas: 
  • Ao avaliar os sistemas agrícolas e a sustentabilidade ou a insustentabilidade destes sistemas, em dada área, constata-se que existe relação direta entre o conceito de sustentabilidade com o enfoque sistêmico, pois “a sustentabilidade é sistêmica” (ROCHA, 2001:40). 
A passagem do sistema agrícola atualmente dominante para o sistema sustentável a “pesquisa agropecuária deve ser direcionada para o enfoque sistêmico, de maneira a integrar os diversos componentes de um agroecossistema” (EHLERS, 1998). 
  • A teoria dos sistemas é a base para estudos sistêmicos. O estudo dos sistemas, que já prestou relevantes serviços às ciências exatas, foi primordialmente introduzido à Geografia por Chorley em 1962 (GOMES, 1998), embora de acordo com JOHNSTON (1986), a análise de sistemas já tenha sido promovida por Sauer, em 1925, quando afirma: “os objetos que existem juntos na paisagem, existem em inter-relação”. 
Ainda neste sentido precursor CHRISTOFOLETTI (1987) também cita como possíveis pioneiros Straler em 1950, Culling em 1957 e Hack em 1960. O preceito elementar do estudo de sistemas é o da conectividade. Pode-se compreender sistema como o conjunto de elementos com ligações entre si e o ambiente, cada sistema se compõe de subsistemas e todos são parte do sistema maior, cada um deles é autônomo e simultaneamente aberto e integrado ao meio, existe inter-relação direta com o meio (SANTOS, 1982:21).
  • É somente a relação que existe entre as coisas que nos permite realmente conhecê-las e defini-las, isto é, “fatos isolados são abstrações e o que lhes dá concretude é a relação que mantêm entre si” (SANTOS, 1982:25). 
O resultado da relação entre o todo e as partes é descrito por MARZALL (1999) como:
  • O todo é mais que a soma das partes (existem propriedades que só são observadas em função das relações que acontecem, não existindo nos elementos individuais); ƒ 
  • A parte é mais que a parte (ao constituir um sistema e relacionar-se com outras partes, podendo apresentar características que não teriam individualmente); ƒ 
  • O todo é menos que a soma das partes (existem características individuais que desaparecem no conjunto das relações, não sendo mais observadas no todo) (MARZALL, 1999:33). 
O sistema, por sua característica aberta, permite relação constante de troca com sua circunvizinhança, modificam-se constantemente. Quando se define o sistema deve-se considerar que ele deve ter, de acordo com CHRISTOFOLETTI (1979:2), elementos, relações, atributos, variáveis, entrada e saída.
  • O sistema é formado por elementos, atributos e variáveis, que significam a composição do sistema; a qualidade destes elementos e as variáveis significam as medidas (a quantidade do atributo). As relações e interações mostram a dinâmica do sistema. 
Considerando a entrada de energia no sistema, como ela se processa em seu interior e sua saída – no caso da agricultura sua produção – usamos a entrada de energia como indicadora dos elementos que compõem este sistema, que podem ser sustentáveis, mas ao interagirem com outros indicadores mostram a dinâmica do sistema agrícola.
  • Atualmente a moderna agricultura adota enfoque monofatorial, cada aspecto da produção é visto de forma isolada. 
Por outro lado, na agricultura alternativa, que foi substituída pelo termo sustentável após a Eco 92,, é utilizado o enfoque sistêmico na análise e aprimoramento da produção.
“Cada unidade produtiva é entendida como um sistema complexo e dinâmico, o qual apresenta limites (extensão física), componentes (atividades, explorações), interações entre os componentes, entradas (insumos, capital, trabalho, energia) e saídas (produtos, energia, etc) (…) A reciclagem dos resíduos animais para a produção vegetal, a utilização humana ou animal, ou o plantio consorciado de dois vegetais são entendidos como interações dos componentes do sistema” (COSTA, 1993:57). 
A separação entre a agricultura alternativa e a convencional também é dada em função do enfoque holístico inerente à primeira. Problemas que possam surgir não são examinados separadamente, mas “buscando-se a origem do problema e a identificação de todos os recursos possíveis à sua superação” (COSTA, 1993:58). 

A sustentabilidade: 
  • A análise da sustentabilidade, de acordo com CHAMBERS e CONWAY (1992), pode ser dividida em dois grupos: o social e o ambiental:
“The sustainability of livelihoods raises many questions. These fall into two groups: whether a livelihood is sustainable environmentally, in its effects on local and global resources and other assets: an whether it is sustainable socially, that is, able to cope with stress and shocks, and retain its ability to continue and improve. Sustainability is thus a function of how assets and capabilities are utilized, maintained and enhanced so as to preserve livelihoods” (CHAMBERS e CONWAY, 1992:12).
A sustentabilidade ambiental estaria ligada, de acordo com o pensamento tradicional, à preservação ou aprimoramento da base de recursos produtiva, principalmente para as gerações futuras. Ainda segundo CHAMBERS e CONWAY (1992:12), na sustentabilidade local, a questão seria se atividades sustentáveis manteriam e aumentariam, ou esvaziariam e degradariam a base natural de recursos? 
  • Globalmente, a questão seria saber se atividades sustentáveis trariam contribuições positivas ou negativas, em longo prazo, ao meio ambiente? Localmente o principal desafio é melhorar a qualidade de vida, de maneira sustentável, intensificando o uso de recursos nas áreas rurais do sul pobre. Globalmente o desafio principal é reduzir a insustentabilidade do estilo de vida, especialmente nas áreas urbanas dos países ricos. 
Ainda de acordo com CHAMBERS e CONWAY, para se fazer completa, a sustentabilidade ambiental tem que ser complementada pela sustentabilidade social. Sustentabilidade social se refere não somente ao que o ser humano pode ganhar, mas à maneira como pode ser mantida decentemente sua qualidade de vida. Isto gera duas dimensões: uma negativa e outra positiva. 
  • A dimensão negativa é reativa como resultado de conflitos, e a dimensão positiva é construtiva, aumentando e fortalecendo capacidades, gerando mudanças e assegurando sua continuidade. A sustentabilidade de indivíduos, grupos e comunidades está sujeita a tensões e choques. Esta vulnerabilidade tem dois aspectos: um externo, em que as tensões e choques são o sujeito, e outro interno, que são sua capacidade de resistir. 
As tensões são tipicamente contínuas e cumulativas, previsíveis e dolorosas, como escassez sazonal, crescimentos populacionais e decréscimos de recursos, enquanto choques são eventos tipicamente súbitos, imprevisíveis e traumáticos, como incêndios, inundações e epidemias. 
  • Qualquer definição de sustentabilidade tem que incluir a habilidade para evitar, ou mais comumente resistir, a essas tensões e choques. Já a dimensão positiva da sustentabilidade social está em sua capacidade para prever, adaptar e aproveitar mudanças no ambiente físico, social e econômico (CHAMBERS e CONWAY, 1992).
A sustentabilidade é entendida como:
“…we will use sustainability in a more focused manner to mean the ability to maintain and improve livelihoods while maintaining or enhancing the local and global assets and capabilities on which livelihoods depend” (CHAMBERS e CONWAY, 1992:12).
Assim a sustentabilidade nas comunidades pesquisadas estará vinculada à capacidade dos agricultores familiares conservarem ou aumentarem sua qualidade de vida mantendo e garantindo recursos para as próximas gerações
  • Ao analisar os sistemas agrícolas e a sustentabilidade ou a não-sustentabilidade destes sistemas, em dada área, constata-se que existe relação direta entre o conceito de sustentabilidade com o enfoque sistêmico. A passagem do sistema agrícola atualmente dominante para o sistema sustentável a “pesquisa agropecuária deve ser direcionada para o enfoque sistêmico, de maneira a integrar os diversos componentes de um agroecossistema” (EHLERS, 1998).
Resultados: 
  • O estudo mostrou que embora estejam dentro de contextos sócio-culturais bastante próximos, existem variações consideráveis em sua estrutura produtiva e nas lógicas familiares presentes na agricultura familiar das comunidades de Pedra Branca, Bocaina e Bom Retiro. 
Primeiramente, a análise dessas lógicas familiares baseada em LAMARCHE (1998) permite concluir que os produtores familiares estudados se enquadram principalmente em dois modelos de funcionamento: o modelo empresa familiar e o modelo camponês. 
  • No modelo empresa familiar encontra-se a maioria dos produtores, principalmente aqueles que têm na pecuária de leite sua principal fonte de renda. Eles mantêm forte estrutura familiar, mas a estrutura produtiva do estabelecimento é “pensada em termos de renda agrícola”, como LAMARCHE (1993) propõe. Existem também aqueles que buscam como objetivo principal do estabelecimento a “satisfação das necessidades familiares”. 
São os produtores que não vendem leite e comercializam apenas parte de sua produção agrícola. Todos os produtores familiares encontrados neste trabalho, têm lógica muito familiar, o que varia é a dependência do mercado. O principal produto destinado ao mercado é o leite. 
  • A comunidade de Bocaina foi a menos dependente deste produto e Pedra Branca mostrou-se a mais dependente. Em Bom Retiro embora ocorra grande número de estabelecimentos produtores de leite, existe diversidade produtiva maior que Pedra Branca. Bom Retiro está em meio termo entre a lógica muito e a pouco dependente. As técnicas utilizadas, tanto na pecuária quanto na agricultura, são bastante tradicionais, dentro de processo tecnológico inerente à Revolução Verde. 
O gado bovino não tem origem em seleção genética moderna, e as técnicas agrícolas são usuárias de defensivos químicos. São técnicas que levam a produção muito pequena, à dependência das indústrias químicas, no caso da agricultura e a impactos negativos no meio-ambiente, devido ao uso de tecnologias pouco sustentáveis. 
  • A mão-de-obra é marcadamente familiar, com a contratação de diaristas somente de acordo com a sazonalidade da produção, e a troca de dias de serviço, sendo ocorrência habitual, mostra sistema com indicadores sustentáveis. Também são indicadores de sustentabilidade a diversidade de cultivos e a agricultura voltada para o consumo das famílias (menor dependência externa). 
A fabricação de doces artesanais tem dois indicadores distintos: por um lado não há mercado consumidor garantido, por outro lado, como agem no sentido de complementar renda, esses produtos não constituem dependência para a economia da família produtora. Os doces artesanais, como complemento da renda familiar, são indicadores de sustentabilidade culturais e econômicos O acesso à água é universal a todas as famílias produtoras e não há conflitos entre elas pela sua utilização. 
  • Este indicador de sustentabilidade sofre no entanto com o processo de trabalho dessas mineradoras, que destroem nascentes, prejudicam a disponibilidade de água e provocam poluição sonora que incomoda muito os produtores. Essas mineradoras são bem-vindas pela administração municipal que vê nelas fonte de arrecadação de impostos (o granito retirado é exportado). 
Os produtores familiares das comunidades estudadas, no entanto, ainda não viram resultados positivos da ação dessas empresas, ao contrário os caminhões carregados de granito destroem pontes e estradas. 
  • Os produtores questionam a relação entre mineradoras e administração local. Um aspecto positivo nessa situação é a necessidade que os agricultores familiares perceberam de associações atuantes nas comunidades, levando alguns produtores a se movimentavam para buscar soluções quanto aos problemas provocados por essas mineradoras. 
Quanto à instrução dos produtores familiares, não é indicador positivo de sustentabilidade. Os proprietários ou chefes de família possuem baixa escolaridade. 
  • Mas os filhos desses produtores também não evoluíram muito no parâmetro educação, sendo muito poucos os que concluíram o ensino fundamental e raríssimo os que têm formação universitária (foram detectados apenas dois filhos dos proprietários que moravam nas comunidades e tinham curso superior, nenhum na área agrária). Os filhos que migram para estudar raramente voltam. 
A migração dos filhos dos produtores familiares não significa retorno econômico para as famílias, como ocorre em muitas áreas de agricultura familiar e que pode dinamizar a propriedade familiar. O número de filhos que emigraram é quase igual ao número de moradores que continuam vivendo nos estabelecimentos estudados. 
  • Conclui-se que a migração dos filhos torna-se necessidade, em decorrência da estrutura produtiva, da dinâmica da produção não os comportar no estabelecimento. Os indicadores de sustentabilidade existem e estão presentes em muitos momentos da exploração familiar aqui estudada. Eles, no entanto, não são suficientes para garantir a sustentabilidade social, ambiental e econômica. É preciso repensar as técnicas, os meios de produção e sua finalidade. 
Constatou-se, na área estudada, a necessidade de boa política rural local, direcionada às necessidades deste produtor familiar, não basta o financiamento existente, é necessário melhorar a assistência técnica, encontrar nichos de mercado consumidor e fazer com que o resultado disso, chegue ao produtor familiar. 
  • Uma reavaliação das necessidades dos agricultores familiares também é importante, que os levem ao conhecimento da operacionalização da sustentabilidade no sistema agrícola e de pecuária causando abertura de mentalidade dos produtores familiares para nova visão do seu mundo e do que os cerca. 
Esses são alguns fatores básicos para iniciar processo que leve a sustentabilidade desses produtores familiares e aos seus sistemas agrícolas, pois a agricultura e pecuária praticada por eles exige dinamização nos sistemas de produção e nas relações entre comunidades rurais para que estes agricultores melhorem suas produções e continuem na área estudada, com melhores condições de vida.

Referências bibliográficas: 

ALTIERI, Miguel. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 2ª ed. Porto Alegre: ed. Universidade, 2000. 
ALTIERI, Miguel. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989. 
BICALHO. Ana Maria de Souza Mello. Desenvolvimento rural sustentável e geografia agrária. In: XII Encontro Nacional de Geografia Agrária. 8, 1998. 
BRANDENBURG, Alfio. Agricultura familiar, ONGs e desenvolvimento sustentável. Curitiba: ed. da UFPR. 1999. BRÜSEKE, Franz Josef. O problema do Desenvolvimento Sustentável, In: 
CAVALCANTI, Clovis (org). Desenvolvimento e natureza: estudo para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife, PE: Fundação Joaquim Nabuco, 1998. CARMO, Maristela Simões. A produção familiar como locus ideal da agricultura sustentável. In: 
FERREIRA, Ângela D. D., BRANDENBURG, Alfio (Org.). Para pensar outra agricultura. Curitiba: ed. UFPR, 1998. p. 215-238. CAVALCANTI, Clovis. Sustentabilidade da economia: paradigmas alternativos da realização econômica. In: 
CAVALCANTI, Clovis (org). Desenvolvimento e natureza: estudo para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife, PE: Fundação Joaquim Nabuco. 1998.
CHAMBERS, Robert e CONWAY, Gordon R. Sustainable Rural Livelihoods: practical concepts for the 21st century. Institute of development studies: Discussion Paper nº 296, 1992. 
CHRISTOFOLETTI, Antônio. Análise de sistemas em geografia. São Paulo – HUCITEC: ed. da Universidade de São Paulo, 1979. 
CHRISTOFOLETTI, Antônio. Análise morfométrica das bacias hidrográficas do planalto de Poços de Caldas (MG). Rio Claro: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, 1970. 215p. (Tese de Livre-Docência). 
CHRISTOFOLETTI, Antônio. Significância da teoria de sistemas em geografia física. Boletim de geografia teorética (simpósio de geografia física aplicada). São Paulo, 1987. p. 119-127. 
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (CMMAD). Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: Fund. Getúlio Vargas, 1988, 430 p. COSTA, Manoel P. B. Agroecologia: uma alternativa viável às áreas reformadas e à produção familiar, Reforma Agrária 23(1): 53-69, jan/abr. 1993. 
DENARDI, Reni A. et al. Fatores que afetam o desenvolvimento local em pequenos municípios do Paraná. EMATER/Paraná: Curitiba. 2000. (Disponível na Internet ). 
EHLERS, Eduardo M. O que se entende por agricultura sustentável? In: VEIGA, José E. (org). Ciência Ambiental; primeiros mestrados. São Paulo: Annablume: 
FAPESP. 1998. p.81-102. EHLERS, Eduardo. Agricultura sustentável: origens e perspectivas de um novo paradigma. 2ª ed. Guaíba: Agropecuária. 1999. 
FAO/INCRA. DIRETRIZES DE POLÍTICA AGRÁRIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. Brasília, FAO/INCRA, 1994. GLIESSMAN, Stephen R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Ed. Universidade/
UFRGS, 2000. GOMES, Ivair. Características dos sistemas naturais da área sul da regional Barreiro (dentro dos grupos Itabira e Piracicaba) e possibilidades de uso. Belo Horizonte: Instituto de geociências IGC/UFMG. 1998 (monografia – disponível na Internet: ). 
IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse preliminar do censo demográfico. Belo Horizonte: IBGE, 2000. JOHNSTON, R. J. Geografia e geógrafos: a geografia humana anglo-americana de 1945. São Paulo: DIFEL, 1986. 
LAMARCHE, Hugues (Coord.). A agricultura familiar: comparação internacional. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. LAMARCHE, Hugues (Coord.). A agricultura familiar: do mito à realidade (vol. II). Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. 
LOPES, Mauro de Rezende. Meio ambiente e comércio de produtos agrícolas. Revista Conjuntura Econômica Dez 1994 v 48 n 29. MARZALL, Kátia. Indicadores de sustentabilidade para agroecossistemas. Porto Alegre: Tese de mestrado, 1999. 
MOREIRA, José Roberto. Agricultura familiar: processos sociais e competitividade. Rio de Janeiro – RJ: Mauad; Seropédica, UFRRJ/CPDA, 1999. 
ROMEIRO, Ademar Ribeiro. Meio ambiente e dinâmica de inovações na agricultura. São Paulo: Annablume. FAPESP. 1998. SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. 
SACHS, Ignacy. Desarrollo sustentable, bio-industrialización descentralizada y nuevas configuraciones rural-urbanas. Los casos de India y Brasil. Pensamiento Iberoamericano 46, 1990. p. 235-256
SANTOS, M. O Espaço e os seus elementos: questões de método. Revista Geografia e ensino. Belo Horizonte – MG, 1 (1): 19-30, março de 1982. VEIGA, José Eli. Problemas da transição à agricultura sustentável. Estudos econômicos. São Paulo, v. 24, n. especial, p.9-29, 1994.


Sustentabilidade social e ambiental na agricultura familiar

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Desregulação, contradições especiais e sustentabilidade urbana

Desregulação, contradições especiais e sustentabilidade urbana

Henri Acselrad
  • Nas últimas décadas explodiram os discursos negativistas sobre a cidade: cidades em crise, sede de crime, violência, degradação paisagística e ambiental, decadência de infra-estruturas, carência habitacional, declínio do emprego formal, estrangulamento da mobilidade e poluição atmosférica.
Disseminaram-se também, em paralelo, discursos sobre mudanças observáveis no quadro urbano – emergem novos modelos de política urbana, a cidade é vista como ator e ao mesmo tempo objeto de uma ação estratégica, de uma gestão de corte empresarial, voltada para a atração de investimentos numa competição interurbana que é pontuada pelas práticas simbólicas do marketing de cidades.
  • O urbano ganha assim “um novo cenário de enunciação” (MICOUD, 1996): ante o que alguns entendem por crise identitária das cidades, são acionadas “tecnologias do espírito” voltadas para uma recomposição das subjetividades urbanas.
A cidade é redescoberta como espaço de “ação dramática”1 , onde as best practices (as boas práticas, propugnadas pelas agências multilaterais) constituem um enredo para a mobilização apaixonada dos cidadãos (com os “indicadores de sustentabilidade urbana” servindo a orientar metaforicamente a marcação dos movimentos dos atores no palco deste drama).
  • A identidade das cidades torna-se assim, cada vez mais, um instrumento de legitimação dos operadores políticos que pretendem resgatá-la não mais como circunscrita a seu tempo presente, mas como referente a um passado de glória e a um futuro radioso (LUSSAULT, 1997).
Para alguns, estaria em curso “uma mudança na natureza da identidade simbólica das cidades, marcada pela competição crescente entre lugares e pela maior importância que a representação estaria assumindo em relação ao próprio objeto que representa” (PEIXOTO, 2000, p.102).
  • Dá-se assim, de forma questionável, um grau de autonomia à esfera simbólica que dificulta o entendimento de suas articulações com a esfera das práticas espaciais urbanas. Suporemos aqui, ao contrário, que entre o jogo das representações e a reconfiguração prática do próprio objeto não há uma hierarquia de importância.
Tentaremos, antes, entender a natureza das relações que hoje podem explicar, ao mesmo tempo, o sentido da reconstrução simbólica da identidade das cidades – movimento este que compreende a própria proposta de “cidades sustentáveis” – e os processos sociais e materiais que lhe estão subjacentes.
  • Na literatura especializada, encontramos dois tipos de tratamento da questão da sustentabilidade urbana: um tratamento normativo, empenhado em delinear o perfil da “cidade sustentável” a partir de princípios do que se entende por um urbanismo ambientalizado; e um tratamento analítico, que parte da problematização das condições sociopolíticas em que emerge o discurso sobre sustentabilidade aplicado às cidades.
Procuraremos discutir no presente trabalho em que medida a “norma” buscada – nos termos de Ewald, os preceitos de medida “pelos quais se pretende apreciar o que é conforme à regra tendo por referência a média no jogo entre o normal e o patológico” (EWALD, 1993, p.81) – integra um processo mais amplo de construção de um novo modo de regulação urbana, próprio às novas condições de vigência da “cidade-máquina de crescimento” (ARANTES, 2000, p.27) e da “marginalidade avançada” (WACQUANT, 2001, p.188-194) através das quais tem-se espacializado a acumulação flexível.

A cidade dos processos sociais concretos:
  • As cidades experimentam nas últimas duas décadas um processo de “abertura dos lugares a relações abertas” (HEALEY, 1997, p.85), no que diz respeito a padrões flexibilizados de trabalho, de transferência de pagamentos, de formas tecnológicas e comunicativas
Nas metrópoles situam-se os movimentos de rearranjo das atividades produtivas decompostas pela superação do fordismo e pela desterritorialização/desindustrialização de corte neoliberal (VELTZ, 1997). A cidade é o lugar de saída e regulação pela mobilidade. Uma economia da velocidade e da incerteza justifica dinâmicas empresariais flexíveis que tendem a provocar efeitos desestruturantes sobre capacidades instaladas e fixas.
  • O próprio urbanismo tende a ser concebido just-in-time, comandado em grande parte pela lógica do mercado imobiliário (VELTZ, 1997). As condições de reprodução do capital são menos coordenadas pelo Estado central e os poderes locais atribuem a si um papel mais pró-ativo nas estratégias de desenvolvimento.
Os processos econômicos catalisados pelo chamado “empreendedorismo urbano”, por sua vez, passam a subordinar as políticas sociais, assegurando um fornecimento fragmentado e desigual dos bens de consumo coletivo, tendo por base os critérios renovados de desempenho econômico. Instaura-se então o que Harvey chamou de “reversão competitiva”, em que não mais o capital busca vantagens locacionais, mas as localidades é que competem entre si, oferecendo vantagens locacionais para atrair os capitais (HARVEY, 1995).
  • A chamada “governança urbana” institui uma multiplicidade de pólos de iniciativa e decisão, envolvendo atores não-governamentais, semipúblicos e privados. Uma tal “flexibilização” institucional veio favorecer fortemente os segmentos empresariais, através dos mecanismos de negociação das normas urbanísticas, liberação do controle do uso do solo, renúncia fiscal e subsídio ao investimento privado, mediante a oferta de infra-estrutura, terrenos, formação de mão-de-obra etc. (SILVA, 2001).
A ênfase na inovação econômica e na competição interurbana, assim como a subordinação dos programas sociais às prioridades da eficiência, acentuaram as divisões na sociedade, apontando, no longo prazo, para eventuais dificuldades na própria estabilização econômica. As novas formas institucionais passaram a requerer conexões entre as distintas dimensões das políticas locais, bem como articulação entre as diferentes agências públicas, semipúblicas, privadas e não-governamentais (MAYER, 1994).
  • Em ausência de barreiras à deslocalização dos capitais, os capitais privados ficaram livres para chantagear o Estado com o fantasma das crises locais (em analogia com a explicação fornecida por Kalecki (1983) para a oposição empresarial às políticas de emprego no pós guerra), exigindo a “flexibilização” das normas ambientais e urbanísticas.
Este novo cenário, que coloca em pauta, nas cidades, uma tensão entre “o espaço dos fluxos” e “o espaço das permanências” (CASTELLS, 1989), pode ser lido como expressão de uma nova correlação de forças que opõe no espaço urbano os atores mais móveis – as grandes corporações – aos atores menos móveis – poderes locais, sindicatos e organizações populares (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999).
  • Este novo quadro, que soma a perda de mecanismos de coordenação aos ganhos de mobilidade de atores empresariais fortalecidos, põe em evidência grandes dificuldades na gestão dos conflitos locacionais urbanos, apontando inclusive, segundo alguns, para riscos de desintegração social no longo prazo (MAYER, 1994).
Temos aqui por hipótese que esses conflitos refletem as contradições deste novo modo de regulação das cidades em gestação, ou deste modo de inserção das cidades em uma regulação que é própria ao capitalismo em sua fase flexível.

A cidade das representações:
  • O meio ambiente é uma temática unificadora que aponta para uma mudança de direção do planejamento urbano no contexto de uma ordem social fragmentada. A instabilidade da sociabilidade urbana contemporânea e os cenários da crise ecológica convergem.
Uma Ecologia do Risco tenta reconstituir o que se sente desaparecer – espécies, tribos, fontes de energia. O planejamento urbano ambientalizado procura ressignificar o espaço com gestos confortadores de segurança e controle, dando visibilidade à natureza nas cidades e exorcizando os medos da destruição ecológica e da instabilização da ordem social (BRAND, 1999).
  • Esta ambientalização do planejamento urbano coincide, por certo, com o desmonte das políticas públicas destinadas a conter as desigualdades socio espaciais. A idéia de meio ambiente tende, neste contexto, a absorver os sentidos da noção de bem-estar nas cidades
O ambiente evocado pelo discurso planificador busca reconstruir a unidade das cidades, sua coesão social e sua governabilidade política frente ao desmonte das instituições e propósitos do Estado regulador, frente às tendências à privatização da vida e à fragmentação do tecido social.
  • Em paralelo, portanto, à desmontagem do setor público e às privatizações, a temática da sustentabilidade tem sido evocada, com freqüência, de modo a fazer transitar as expectativas de bem-estar dos âmbitos da habitação, da saúde e direitos sociais, fortemente marcados pelo acesso socialmente desigual, para uma noção de meio ambiente construída como una e comum a todos.
O meio ambiente, vestido desta roupagem universalista, convém, por certo, aos propósitos de pré-construção de um consenso social destinado a reconstituir o sentido de comunidade, solidariedade e interesse comum em um mundo socialmente fragmentado, buscando acomodar as diferenças em uma nova totalidade interdependente.
  • No planejamento urbano, este tipo de referência ao meio ambiente tem assim atribuído legitimidade a instâncias políticas contestadas, mediando contatos entre diferentes grupos e culturas urbanas, valorizando espaços compartilhados de consumo de natureza, focalizando espaços de fluxos como rios, corredores arbóreos e waterfronts, todos eles convertidos em lugares atrativos da cidade por intermédio de trabalhos paisagísticos e pela concentração de eventos culturais que para aí acorrem (BRAND, 2001).
Conforme observa Healey (1997), as cidades que se pretendem sustentáveis investem no estabelecimento de conexões, através de dinâmicas de comunicação e cooperação, buscando integrar, no espaço, sociedade e ecossistemas, e, no tempo, presente e futuro.
  • Esta também é a percepção de Emelianoff (1995), para quem o discurso das cidades candidatas à “sustentabilidade” tem em comum uma lógica de inclusão numa continuidade espacial e temporal: inclusão das periferias (pela descentralização), da memória (pela reciclagem) e de atores sociais (pela interação) – incluindo não vivos e gerações ausentes.
Inclusão da cidade no ecossistema global e do ecossistema local na cidade; inclusão da cidade no patrimônio das gerações futuras e do patrimônio local nas cidades; inclusão da democracia participativa na cidade e da cidade na “democracia planetária”.
  • A intenção de produzir continuidades é visível também entre os atores da enunciação da sustentabilidade urbana no Brasil, quando estes destacam objetivos de “retroalimentação” próprios a uma “sociedade de fluxos cíclicos” (PESCI, 2004), manifestam a vontade de estabelecer “interações e interfaces positivas”, de “abrir portas e criar corredores de ar ou de fauna” (PESCI, 2000), construindo cidades “cada vez mais conectadas”, com “um padrão que liga todas as coisas, com relações de pertinência e permanência”, que “expandam sinergias” através de “estratégias cooperativas” (SILVA, 2004, p.98).
A inclusão das periferias via descentralização, da memória via restauração e dos atores sociais via interação constituem, assim, procedimentos discursivos de expansão simbólica da base de legitimação das políticas urbanas. A busca de um consenso urbano de tal forma ampliado espacial e temporalmente, legitimado nos propósitos do equilíbrio biosférico e da justiça intergeracional, explica-se, por certo, pela necessidade de prevenção dos riscos de ruptura sociopolítica em cidades crescentemente fragmentadas pelos processos de globalização e acumulação flexível.
  • Portanto, se o recurso à noção de sustentabilidade urbana parece integrar crescentemente uma norma do planejamento aplicado a cidades fortemente divididas, o caráter simbólico das ações associadas a tal noção – seja pela representação retórica de um meio ambiente uno e consensual, seja pelo sentido que se queira imprimir às operações materiais “de conexão” empreendidas em seu nome –, tais como corredores arbóreos, fluxos aquáticos e outros ícones materiais da integração social, não impor-se-á, porém, como suficiente para dar estabilidade aos mecanismos da reprodução urbana.
A noção de sustentabilidade parecerá constituir, assim, apenas parte de um esforço mais amplo de configurar um novo modo de regulação urbana capaz de integrar duravelmente na dinâmica reprodutiva a própria desigualdade constitutiva das cidades em que convivem a marginalidade avançada e o rentismo urbano.
  • Trata-se, desse modo, para caracterizar a reconfiguração dos processos de regulação nas cidades, de avançar na investigação do modo como, através da crise urbana, vem-se reproduzindo a cidade compatível com a acumulação flexível.
Contradições especiais e sustentabilidade urbana:
  • Na conceituação de Alain Lipietz, modo de regulação é o conjunto de normas, incorporadas ou explícitas, de instituições, mecanismos de compensação e dispositivos de informação (tais como normas de formação de salários, modalidades de concorrência entre as empresas e mecanismos de criação de moeda e crédito) que ajustam permanentemente as antecipações e os comportamentos individuais à lógica de conjunto do regime de acumulação (LIPIETZ; LEBORGNE, 1988).
No fordismo, a aliança entre grande corporação, Estado e sindicatos fez das cidades o espaço de realização da produção em massa de automóveis e imóveis cujo mercado foi dinamizado pelas normas de consumo através das quais os salários, via negociação coletiva, incorporavam de forma razoavelmente antecipada parte dos ganhos de produtividade.
  • A cidade da regulação dita fordista foi fortemente marcada por sua compatibilidade com a produção automobilística e com a produção capitalista de moradias. Nas condições emergentes de um regime de acumulação dito flexível, um novo modo de regulação urbana estaria sendo gestado pela fusão entre as políticas de lugar e as políticas de produção, fusão esta compatível com os elevados níveis de mobilidade dos capitais promovidos por um Estado – por alguns dito schumpeteriano (JESSOP, 2003), em oposição ao anterior estado keynesiano – que integra as dinâmicas da competição internacional, apoiando inovações sociotécnicas que operam em economias abertas.
A literatura que se tem debruçado na identificação dos traços do que seria este novo modo de regulação assinala que:
  1. As condições de reprodução do capital são menos coordenadas pelo Estado central e os poderes locais assumem papel pró-ativo nas estratégias de desenvolvimento econômico. A cidade é aí o elo entre a economia local e os fluxos globais, passando a ser assim objeto das pressões competitivas internacionais. As cidades afirmam-se como máquinas de crescimento promotoras da competitividade internacional. Instaura-se conseqüentemente uma competição interurbana pela exploração das vantagens competitivas específicas e pela “reversão competitiva” – redução de custos, subsídios, atração de empresas que buscam recursos humanos qualificados, maior e mais eficiente infra-estrutura econômica, proximidade com centros produtores de tecnologia e mercados consumidores de mais alta renda, oferta de vantagens fiscais, fundiárias, sociopolíticas e ambientais, com os constrangimentos externos favorecendo a adoção do dumping socioecológico;
  2. Desenvolve-se uma competição interurbana pela oferta de possibilidades de consumo de lugar, pela atração de turistas e de projetos/eventos culturais;
  3. Desenvolve-se competição interurbana pela capacidade de controlar funções de comando financeiro e comunicacional;
  4. Os processos econômicos passam a subordinar as políticas sociais e de emprego. As políticas sociais são desmanteladas e substituídas por um “empreendedorismo urbano” de cujo sucesso dependem o emprego e a renda, ficando os problemas da marginalização social na dependência das iniciativas das próprias organizações da sociedade;
  5. As novas condições de governo dos processos urbanos passam a envolver também atores não-governamentais, privados e semipúblicos.
A coordenação dos diferentes campos de política urbana pressupõe a instauração de novos sistemas de barganha, aparecendo as “parcerias” como mecanismos de apoio aos mercados em substituição a políticas preexistentes de ordenamento dos mercados.
  • Em contexto de acumulação flexível, a intensificação e variabilidade temporal do uso de recursos ambientais ameaça a estabilidade do “metabolismo urbano”. Conforme sublinha Veltz, a metrópole acelera a divisão do trabalho e a diversificação contínua dos bens e serviços, constituindo-se em lugar privilegiado do re-desenvolvimento de sistemas produtivos doravante ultra-decompostos.
A economia da velocidade e da incerteza, associada a uma demanda cada vez menos previsível, destrói e recria em permanência o território social. Dadas as altas taxas de juros que tornam o peso fundiário das operações muito elevado, o urbanismo just-in-time de mercado – aquele protagonizado pelas próprias empresas – tende a ser cada vez menos regulamentar e cada vez mais comandado pelas lógicas do capital imobiliário (VELTZ, 1997, p.391).
  • Tudo que diz respeito ao ordenamento espacial regulamentar da cidade, inclusive suas dimensões ecológicas, se esvai em ausência de forças de coordenação, que são eventualmente substituídas pela auto-organização da “governança corporativa”, da parceria privado-privado, ou seja, em parte crescente, pelos próprios capitais em competição.
Esta nova regulação urbana compatível com a acumulação flexível movida pela alta mobilidade espacial do capital atualiza assim a cidade como “máquina de crescimento” (ARANTES, 2000, p.27), pela qual coalizões de elite centradas na propriedade imobiliária conformam políticas urbanas, dando livre curso ao propósito de expandir a economia local e aumentar a riqueza.
A construção de um senso comum econômico promissor de empregos torna-se a peça-chave de uma situação de mobilização competitiva permanente para a batalha de soma zero das cidades concorrentes.
  • A operação destes mecanismos implica uma transferência de riqueza e chances de vida do público em geral para os grupos rentistas, tendo por corolário uma cidade desigual em que o “ambiente de negócios” destina amenidades para os partícipes da coalizão de crescimento e assina os riscos sociais e ambientais para os pobres urbanos e trabalhadores menos organizados.
A “cidade-máquina de crescimento” é pois uma cidade que impõe riscos aos mais fracos, constituindo também uma máquina de desorganizar os trabalhadores – desejosos de emprego a qualquer custo – e a sociedade em geral – carente dos recursos de investimento, fonte de receitas públicas.
  • A busca pela constituição dos novos modos de regulação urbana não se dá, porém, sem contradições. Em consonância com os imperativos de desregulação requeridos pela acumulação flexível, tem-se fragmentado o tecido institucional e social urbano, tanto numa fragmentação por baixo como numa fragmentação pelo alto.
A fragmentação por baixo, sugere-nos Jaglin (1998), decorre de uma concepção comunitarista de solidariedade, que promove um parcelamento gestionário dos bairros pobres, uma descontinuidade física das redes de ilhas selecionadas de atendimento, gerando competição entre as comunidades e no interior das mesmas por recursos escassos. 
  • A fragmentação pelo alto, por sua vez, reúne todas as formas de dessolidarização entre áreas ricas e áreas pobres, de renúncia ao compartilhamento fiscal, tarifário e de redes de infra-estrutura, além das práticas de auto-segregação espacial, via condomínios fechados, gradeamento, segurança privada etc.
Trata-se, em suma, de mecanismos de enfraquecimento da coesão social, de desintegração das instituições portadoras de sentido coletivo, processos dos quais a violência urbana é apenas sintoma espetacular. É aí, no entanto, que residirá o fermento para o florescimento da ideologia da segurança e do tratamento penal da miséria.
  • Ante as evidências da sociabilidade em crise, uma demanda por ordem ocupa o espaço da contestação crítica do Estado. A política urbana tende a ser substituída por uma polícia das cidades. Enquanto os poderes transnacionais dominam a economia mundial a partir das megacidades, confere-se ao Estado o papel de nelas exercer o controle social e policial sobre as populações marginalizadas (LUZI, 1996).
Para pacificar o campo urbano, os projetos urbanísticos internalizam a variável segurança, procurando um ordenamento do meio que se volte para a prevenção da criminalidade nas zonas ditas “vulneráveis, sensíveis ou difíceis”, acolhendo uma parafernália de tecnologias de vigilância a serem aplicadas sobre as chamadas “populações de risco”.
  • Para regular as tensões urbanas, procura-se então “normalizar aqueles que transgridem as normas de um sistema social que, precisamente, os impede de levar uma vida normal”(GARNIER, 1999, p.18). E para pacificar a democracia de mercado, ameaçada pelas próprias desregulações de mercado, fala-se insistentemente em reconstruir no plano local – nas comunidades – tudo o que o global vem destruindo em nível nacional, a saber, a “solidariedade” e a “cidadania”.
A desigualdade de renda, o desemprego e a marginalidade avançada alimentam em permanência uma instabilidade urbana que só tem as tecnologias securitárias como resposta, ainda que direcionada especificamente àqueles que não afiguram-se “capacitados para o consenso”.
  • Nesse contexto, os esforços de internalização da segregação ou de auto-segregação nas chamadas “cidades gradeadas” – empreendimentos imobiliários residenciais murados ou gradeados aos quais o acesso público é restrito, com freqüência vigiados por segurança privada e sistema interno de tevê, caracterizado usualmente por acordos legais que ligam os residentes a um código comum de conduta – passam a ser experimentados como elementos das novas instituições reguladoras. Um certo número de pesquisas é desenvolvido para aferir a funcionalidade da auto-segregação.
Não se pergunta, neste tipo de investigação, o que são as “comunidades gradeadas” como fato social (BLANDY et al., 2003), mas se as mesmas poderiam fazer parte do corpo institucional do novo modo de regulação urbano, ou seja, se elas resolvem o “problema da violência” sem comprometer a dinâmica inigualitária da acumulação flexível.
  • A auto-segregação socioespacial das elites é apresentada assim como parte de um contrato espacial compatível com o baixo grau de diversidade social desejado para as áreas de moradia, onde a capacidade de pagamento é utilizada para privatizar serviço e limitar a entrada de estranhos e a passagem de vizinhos externos.
A comunidade gradeada representaria um artifício compatível com a nova regulação urbana, pois ofereceria condições de convivência com a desigualdade da “marginalidade avançada”, reforçaria o Estado schumpeteriano pela privatização de áreas e serviços públicos, oferecendo atributos simbólicos de promoção local de imagem favorável à atração de investimentos, embora, conforme boa parte dos resultados de pesquisa, não contribuiria para a coesão social (BLANDY et al., 2003).
  • Não o fazendo, ela não resolveria o problema principal originado na concretude da fratura social. Um segundo tipo de contradição encontra-se associado à dualização funcional do espaço – o processo pelo qual institucionaliza-se o duplo padrão social e ambiental – ambiente de negócios versus ambiente degradado – com queda tendencial do nível médio de proteção social e ambiental nos espaços degradados pela imposição de riscos – os “usos do solo localmente indesejados” – aos pontos supostos de menor resistência, onde residem os pobres urbanos.
Os atores sociais que se entendem “discriminados ambientais” denunciam o senso comum segundo o qual vigoraria em geral o critério “não no meu quintal”: segundo eles o que opera, sim, é o princípio “no quintal dos mais fracos”, daqueles espacialmente segregados.
  • Tal mecanismo de reprodução da desigualdade ambiental decorreria, em grande parte, do novo mecanismo de fusão empresarial das políticas de produção e de lugar. As mudanças introduzidas nas políticas e estratégias locacionais em contexto de competição interurbana multiplicariam os conflitos de uso do solo.
Conforme assinala Sabatini, “os conflitos ambientais nas cidades que se multiplicaram nas últimas décadas representam reações de defesa da qualidade de vida ameaçada pela globalização econômica” (SABATINI, 1999, p.27) e suas implicações na imposição aos mais fracos de “usos indesejáveis do solo, congestão, contaminação e insegurança” (SABATINI, 1999, p.37).
  • Tais conflitos são “resolvidos” primariamente pela alegação de que os empreendimentos que ameaçam as condições de moradia geram empregos. As comunidades mais fracas (de “desespero econômico”, segundo Gould, 2004), incapazes de atrair indústrias “limpas”, contentar-se-iam com o lema “acolher indústria suja ou nenhuma indústria”, ou seja, sediar a “bomba-relógio ambiental” (BULLARD, 2000, p.15-16).

Desregulação, contradições especiais e sustentabilidade urbana

  • Os conflitos locacionais são assim redefinidos em termos do diferencial de mobilidade entre os atores. Conseqüentemente, o recurso à chantagem de localização torna-se “argumento” de força para impor certos usos sobre outros.
Conseqüentemente,
I) os atores desprovidos de meios para exercer o poder do investimento são alijados da competição territorial (indústrias conseguem fazer aprovar sua instalação em área de manancial em razão da “fraqueza econômica” de ambientalistas, por exemplo);
II) os trabalhadores mais fracos, pertencentes aos segmentos mais atingidos pelo desemprego, são objeto de argumentação destinada a persuadi-los de que “toda regulação ambiental destrói empregos” – são pressionados, assim, a aceitar qualquer tipo de emprego, mesmo precário, insalubre e ambientalmente arriscado;
III) os moradores menos móveis, ou que circulam apenas no espaço segmentado do risco, serão receptáculo recorrente dos “usos do solo socialmente indesejáveis” e vitimados por uma superposição de riscos e carências.
Tais processos de imposição de riscos ambientais aos mais fracos não ocorrerá, porém, sem resistências, pois lutas por democratização do espaço incorporarão também exigências de “justiça locacional e ambiental”.
  • Tais resistências às decisões discriminatórias de uso do solo são um fenômeno relativamente recente que se associa a uma re-significação da questão ambiental, agora incorporando preocupações com os impactos distributivos às atividades. 
Em lugar de educação ambiental e lobby, tais lutas têm implicado, em diversos países e contextos, em interrupção de ruas, sitins, manifestações de massa e boicotes. Têm em comum a denúncia dos mecanismos da dualização, a saber:
  • Haveria desconexão entre os tomadores de decisões locacionais e as vítimas dos aspectos indesejáveis e portadores de risco destas decisões (o poder político – afirma-se – é usado para manter a poluição à distância dos poderosos);
  • Enquanto houver áreas de menor resistência, toda decisão que restringe o dano ambiental dos empreendimentos é seguida de transferência das atividades danosas para áreas de pobres urbanos.
No caso do Brasil, um certo número de episódios sugere que tal tipo de resistência à imposição desigual de riscos ambientais começa a se multiplicar – citem-se, entre outros, os casos da anulação do projeto de localização de uma termoelétrica em Itaguaí (FERRAZ, 2004),
  • Rio de Janeiro, a suspensão da transferência de depósitos de lixo químico de Cubatão para Camaçari por iniciativa da ACPO (Associação de Combate aos Poluentes Orgânicos Persistentes), entre outros (MALLERBA, 2004).
Conforme expressão de jovens quilombolas do Espírito Santo confrontados à expansão inigualitária de empreendimentos modernizadores em suas áreas de moradia, trata-se de atores sociais que “aprenderam a dizer não”. Tais modalidades de conflito – parte cada vez mais visível das contradições espaciais da acumulação flexível – tendem a motivar também a busca de instituições reguladoras capazes de estabilizar as condições ideais de implantação espacial dos empreendimentos.
  • Os indícios apontam aqui para a perspectiva de privatização dos conflitos locacionais e ambientais, ou do estabelecimento de uma espécie de “parceria público-privada” na resolução dos conflitos pelo concurso dos próprios planejadores. Campbell, por exemplo, sustenta que “o planejador deve contribuir para a constituição de um novo pacto espacial que viabilize soluções win-win dos conflitos entre ‘economia, ecologia e justiça’, através de um multilingüismo regulatório” (CAMPBELL, 1996, p.5).
A regulação não resultaria coerente, prossegue ele, se houver prevalência de uma “linguagem” sobre outra. A “cidade sustentável” seria, assim, nesta perspectiva, a cidade capaz de negociar, através da parceria público-privada (tendo os “planejadores” como mediadores), o “conflito de propriedade entre crescimento econômico e eqüidade”, o “conflito de recursos entre crescimento econômico e meio ambiente” e o “conflito de desenvolvimento entre preservação ambiental e eqüidade” (CAMPBELL, 1996, p.5-6).
  • O problema “da regulação” seria, portanto, aqui, o de compatibilizar acumulação (trabalho e insumos) com legitimidade (adesão social e estabilização política por neutralização dos conflitos), tendo o planejador o papel de promotor do “multilingüismo negocial”. Ao Estado restaria a mediação dos conflitos, os quais não passariam, porém, pela esfera política, sendo resolvidos caso a caso, privatizados. Como sugere, segundo lógica similar,
Sabatini: “a filosofia de fundo é que o melhor é compatibilizar interesses, por certo dentro dos limites ambientais e políticos fixados por lei (normas ambientais e direitos cidadãos)”. Assim, prossegue ele, “o planejador poderia desempenhar importante papel quando um projeto que interessa ao município é rechaçado por poderosas organizações de moradores” (SABATINI, 1999, p.32).
  • Poderia também “evitar o risco de que a eventual realização de um Estudo de Impacto Ambiental e o cumprimento das instâncias de participação contempladas na legislação favoreçam a ocorrência de um conflito ambiental aberto” (SABATINI, 1999, p.33). Caberia ao planejador, portanto, neste esboço de instituição reguladora, evitar a eclosão de conflitos e favorecer a estabilização política dos mesmos.
A norma fordista é agora flexibilizada através de mecanismos de legitimação aos quais o planejador – o Estado – é chamado a colaborar. Neste contexto, os conflitos “mais difíceis de resolver”, segundo Sabatini (1999, p.34), serão justamente aqueles relativos aos usos do solo localmente indesejáveis, porque neles” a oposição local tende a ser total, excluindo o espaço necessário de negociação para superar o conflito” (SABATINI, 1999, p.34).
  • Como soluções serão apresentadas as técnicas de participação em negociação supralocal (onde, dependendo da natureza dos mecanismos de “participação”, o processo pode politizar-se ou, em caso de profissionalização das tecnologias de consenso, despolitizar-se) ou negociação de compensações (ou seja, sua privatização, com pagamento da anuência dos indivíduos prejudicados/ “monetização das perdas”) (SABATINI, 1999, p.34-35).
Considerações Finais:
  • A atual crise urbana é também uma crise de constituição de um novo modo de regulação para as cidades – modo este que se quer compatível com as dinâmicas de um capitalismo flexível. Esta crise tem-se alimentado das novas contradições espaciais verificadas na cidade, seja por via de processos infra-políticos (da chamada “violência urbana”), seja por via de processos políticos – aqueles pelos quais se vem crescentemente denunciando e resistindo à dualização funcional da cidade entre áreas ricas e relativamente mais protegidas e áreas pobres submetidas a todo tipo de risco urbano.
A busca de cidades “sustentáveis”, inscritas no “metabolismo de fluxos e ciclos de matéria-energia, simbiótica e holística” remete, por certo, à pretensão de se promover uma conexão gestionária do que é, antes de tudo, fratura política. Em cada definição da “sustentabilidade urbana” encontraremos, por certo, o embrião de diferentes projetos de futuro para as cidades (ACSELRAD, 2001).
  • Tem-se observado, com efeito, a pretensão dos atores hegemônicos de fazer do discurso da sustentabilidade um meio de instaurar consensos simbólicos, buscando, em particular, costurar as cisões de um tecido social urbano crescentemente atravessado pelas contradições da globalização.
Ora tecnificase o debate, tentando enquadrar a sustentabilidade nos propósitos de obtenção de cidades compactas, econômicas em espaço, matéria e energia, ora propugna-se o consenso como precondição para a construção de cidades duráveis, abdicando, conseqüentemente, de considerar as cidades enquanto espaço por excelência do debate público e da construção de mundos diversos e compartilhados.
  • Neste quadro, a “sustentabilidade urbana” tende a se reduzir a um artifício discursivo para dar às cidades um atributo a mais para atrair capitais através da dinâmica – via de regra predatória – da competição interurbana.
No presente texto, procuramos entender o modo como estes investimentos na construção de consenso simbólico – seja no plano retórico de um “ambiente uno”, seja no da implementação de projetos urbanísticos portadores do sentido de “conexão” da fratura social – integram um processo mais amplo de busca de mecanismos e instituições, práticos e discursivos, através dos quais tenta-se constituir um novo modo de regulação urbano compatível com os requisitos da acumulação flexível.
  • A implantação de comunidades gradeadas e a difusão de tecnologias de consenso voltadas à resolução negociada de conflitos urbanos aparecem como elementos fortes de uma tal regulação que, ao buscar a reprodução das cidades através dos mecanismos da crise urbana, encontra nas contradições espaciais da acumulação flexível seu principal motor.
Referências:

ACSELRAD, H. Sentidos da sustentabilidade urbana. In: ACSELRAD, H. (Org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.27-55.
ARANTES, O. B. F. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In:
ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p.11-74.
BLANDY, S. et al. Gated communities: a systematic review of the research evidence. Glasgow: University of Glasgow/ESRC Center for Neighbourhood Research, 2003. (Paper, 12).
BLOWERS, A. Environmental policy: ecological modernization or the risk society. Urban Studies, Essex : Longman Group, v.34, n.5-6, p.845-871, 1997.
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999
BRAND, P. La construcción ambiental del bienestar urbano: caso de Medellín, Colombia. Economía, Sociedad y Territorio, Toluca: El Colegio Mexiquense, v.3, n.9, p.1-24, ene./jun.2001
BRAND, P. The environment and postmodern spatial consciousness: a sociology of urban environmental agendas. Journal of Environmental Planning and Management, Newcastle: University of Newcastle, v.42, n.1, p.631-648, Sept. 1999.
BULLARD, R. D. Dumping in Dixie: race, class and environment quality. Oxford: Westview Press, 2000.
CAMPBELL, S. Green cities, growing cities, just cities?: urban planning and the contradictions of sustainable development. Journal of the American Planning Association, Chicago, v.62, p.296-313, Summer, 1996.
CASTELLS, M. The informational city: information technology, economic restructuring and the urban-regional process. Oxford: Blackwell, 1989
DEPAULE, J. C.; TOPALOV, C. La ville à travers ses mots. Disponível em: http://www.unesco.org/ most/p2art.html Acesso em: jul. 2004
DIKEN, B.; LAUSTEN, C. B. Zones of indistinction: security, terror and bare life. Lancaster: Lancaster University/Department of Sociology, 2002.
EMELIANOFF, C. Les villes durables: l’émergence de nouvelles temporalités dans de vieux espaces urbains. Écologie Politique, n.13, p.37-58, Printemps 1995. EWALD, F. Foucault e a norma. In: EWALD, F. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Ed. Vega, 1993
FERRAZ, I. O fim do projeto da usina termelétrica a carvão mineral de Itaguaí. In: ACSELRAD, H. (Org.). Conflito social e meio ambiente no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p.239-250.
GARNIER, J. P. Le nouvel ordre local: gouverner la violence. Paris: L´Harmattan, 1999. GOULD, K. A. Classe social, justiça ambiental e conflito político. In: ACSELRAD, H.;
HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 69-80.
HARVEY, D. L’accumulation flexible par l’urbanisation: reflexions sur le “post-modernisme” dans la grande ville americaine. Futur Antérieur, v.29, n.3, p. 121-145, 1995,
HEALEY, P. Building sustainable futures in small and medium-sized cities in Europe. In: MEGA, V.;
PETRELLA, R. (Ed.). Utopias and realities of urban sustainable development: new alliances between economy, environment and democracy for small and medium-sized cities: Conference proceedings, Turin-Barolo, 1996. Dublin: Fondation Européenne pour l’Amélioration des Conditions de Vie et de Travail, 1997. p.79-88.
JAGLIN, S. La gestion urbaine en archipels en Afrique Australe. Les Annales de la Recherche Urbaine, Paris: Centre de Recherche d’Urbanisme, n.80-81, p. 27-34, déc. 1998.
JESSOP, B. Recent societal and urban change: principles of periodization and views on the current period. Lancaster: Lancaster University/Department of Sociology, 2003.
KALECKI, M. Os aspectos políticos do pleno emprego. In: KALECKI, M. Crescimento e ciclo nas economias capitalistas. São Paulo: Hucitec, 1983. p.54-60.
LIPIETZ, A.; LEBORGNE, D. Flexibilité defensive ou flexibilité offensive: les défis des nouvelles technologies et de la competition mondiale. S.l.: s.n., 1988. Trabalho apresentado na Conferência Trends and Challenges of Urban Restructuring, 1988, Rio de Janeiro.
LUSSAULT, M. Des récits et des lieux: le registre identitaire dans l’action urbaine. Annales de Géographie, Paris: Société de Géographie Armand Colin, n.597, p.522-530, sep./oct.1997. LUZI, J. Dialectique de la dépendance. Agone, n. 16, p.133-149, 1996.
MALERBA, J. Meio ambiente, classe e trabalho no capitalismo global: uma análise das novas formas de resistência a partir da experiência da ACPO. S.l.: s.n., 2004. Trabalho apresentado no 2. Encontro da ANPPAS, 2004, Indaiatuba.
MAYER, M. Post-fordist city politics. In: AMIN, A. (Ed.). Post-fordism: a reader. Oxford: B. Blackwell, 1994. p.316- 337.
MICOUD, A. L’écologie urbaine: nouvelles scènes d’énonciation. Écologie et Politique, Paris, n.17, p.3-43, été 1996.
PEIXOTO, P. Gestão estratégica das imagens das cidades: análise das mensagens promocionais e de estratégias de marketing urbano. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, n. 56, p.99-122, fev. 2000.
PESCI, R. La construcción de la ciudad sustentable: proyectación y gestión. S.l.: s.n., 2000. Paper distribuído em Urban 21-Conferencia Regional para America Latina y el Caribe, 2000, Rio de Janeiro.
PESCI, R. Um novo humanismo e o planejamento ambiental. In: MENEGAT, R.; ALMEIDA, G. (Org.). Desenvolvimento sustentável e gestão ambiental nas cidades. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004. p.97-127.
SABATINI, F. Participación ciudadana para enfrentar conflictos ambientales urbanos: una estrategia para los municipios. Ambiente y Desarrollo, Santiago de Chile: CIPMA, v.15, n.4, p.26-35, dic.1999.
SILVA, D. J. A transdisciplinariedade do exercício profissional na construção da sustentabilidade das cidades. In: EXERCÍCIO profissional e cidade sustentáveis: textos referenciais. São Luís:
CONFEA, 2004. p.95-103. SILVA, R. C. da. A emergência do empreendedorismo público urbano na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001. Tese (Doutorado) – UFRJ/IPPUR.
VELTZ, P. Temps de l’économie, temps de la ville: les dynamiques. In: OBADIA, A. (Org.). Entreprendre la ville: nouvelles temporalités, nouveaux services. S.l.: Éd. de l’Aube, 1997. Tradução para o português: Tempos da economia, tempos da cidade: as dinâmicas. In: ACSELRAD, H. (Org.). A duração das cidades. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.139-154. WACQUANT, L. Os condenados da cidade. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

Desregulação, contradições especiais e sustentabilidade urbana