domingo, 3 de julho de 2016

Da ideologia do progresso à idéia de desenvolvimento (rural) sustentável

Da ideologia do progresso à idéia de desenvolvimento (rural) sustentável

Jalcione Almeida
  • Este texto trata, de maneira introdutória, do tema do desenvolvimento e da agricultura sustentáveis. Sua elaboração foi motivada por uma série de demandas dos atores sociais envolvidos no debate das alternativas ao padrão de desenvolvimento vigente. Busca-se clarear posições e apresentar os limites e desafios à sua implementação no contexto agrícola e rural atual. 
Nas versões preliminares propôs-se a subsidiar discussões preparatórias à Conferência Internacional sobre Tecnologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, iniciativa interinstitucional (UFRGS, EMBRAPA, EMATER/RS, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Rede Tecnologias Alternativas/Sul e Programa de Cooperação em Agroecologia), realizada em Porto Alegre, de 18 a 22 de setembro de 1995. Esta versão tenta incorporar as diversas contribuições recebidas nesse processo. 
  • A primeira parte trata da idéia de desenvolvimento, mostrando como surge, a quais conceitos e noções está (estava) associada e a sua necessidade de superação, incorporando outros conceitos e idéias que privilegiem o qualitativo e a sustentabilidade. 
Depois, discute-se o desenvolvimento rural, associando-o à idéia antes comentada e traçando, brevemente, suas principais características e manifestações no mundo e no Brasil nas últimas três décadas. Isto induz ao que é discutido logo a seguir, a partir dos limites e problemas gerados por um certo tipo de desenvolvimento “moderno”. 
  • No que segue, portanto, são considerados alguns aspectos determinantes do desenvolvimento rural e da agricultura sustentáveis. Para concluir, apresento e discuto alguns limites e desafios para a agricultura e o desenvolvimento sustentáveis, insistindo na necessidade de combinar-se, no atual estágio de discussão e experimentação de práticas, diferentes propostas e idéias, com o objetivo de, no médio prazo, atingir um outro patamar para o desenvolvimento da agricultura no Brasil.
A ideia de progresso e de Desenvolvimento: 
  • No século 20, em países e regiões afastadas dos centros da modernização, a idéia de desenvolvimento ganha força. Na década de 1950, o termo já era empregado correntemente na literatura econômica e na linguagem comum. A partir daí, tornou-se um componente ideológico essencial da civilização ocidental (Wallerstein, citado por Valceschini, 1985). 
Tanto no discurso (neo)liberal como no socialista (do “socialismo real existente”), a idéia de desenvolvimento ganha força neste século, revigorada por teorias e princípios econômicos que vêem no Estado um dos impulsionadores da modernização, garantindo um importante papel ao desenvolvimento econômico e técnico. 
  • É dentro do liberalismo que o termo desenvolvimento substitui a noção de progresso, que vigorou de forma dominante até a década de 1930, associada a uma outra idéia de crescimento. Até então, essas noções permitiam resolver os problemas que se colocavam como, por exemplo, a questão do emprego/desemprego, do consumo, etc. 
A noção de progresso, princípio fundante do espírito dos enciclopedistas franceses do século 18 e do positivismo no século 19, até então vinha sendo entendida como um movimento evolucionista, na direção do crescimento e da ampliação de conhecimentos. 
  • O progresso não era restrito apenas ao campo das ciências mas, sobretudo, referia-se a melhorias das condições de vida, no sentido das liberdades políticas e do bem-estar econômico. O progresso assume, antes de tudo, um sentido parcial e prático: um progresso é um “melhoramento”. 
Nos âmbitos técnico e científico é este sentido que ainda predomina: por exemplo, uma descoberta como a penicilina ou a eletricidade trazem melhoramentos incontestáveis para a vida em sociedade. Mas o progresso, generalizando o sentido da palavra à evolução de uma sociedade no seu conjunto, trouxe uma representação apriorística e globalizante do mundo. 
  • Quanto mais a noção de progresso é extrapolada em termos gerais, mais se trata de uma crença, de uma representação a priori, enfim, de uma ideologia. O mito do progresso, tal como é pensado e descrito anteriormente, já fragilizado pela crise financeira mundial dos anos 30, entra em colapso no “mundo civilizado ocidental”, industrialmente avançado, no final dos anos 70. 
Nos países pouco desenvolvidos industrialmente este é um conceito que nunca pôde ser verdadeiramente considerado, na medida em que o avanço indefinido dos melhoramentos técnico-científicos não aconteceu e que não houve um recuo progressivo e definitivo da miséria. 
  • De fato, a noção de progresso, que foi do século 18 ao 20 sucessivamente associada às idéias de perfeição, evolução, crescimento, não é mais hoje nem automática nem unicamente aplicada a uma seqüência histórica, generalizável para todos os povos e sociedades. A crise da noção de progresso leva a imaginá-lo como caracterizando etapas sucessivas de uma mesma civilização. 
A análise social coloca agora em evidência a co-existência conflitual entre civilizações muito diferentes, onde a dominação é uma relação bem mais freqüente que a solidariedade, e onde muitas vezes essa relação é fonte de opressão e miséria. Pode-se, por exemplo, afirmar que os agricultores se beneficiaram do progresso no caso específico da agricultura do Sul do Brasil nos últimos 30 anos? 
  • A resposta é sim e não, pois as evoluções sociais se produzem sempre por diferenciações com, ao mesmo tempo, “ganhadores” e “perdedores”. E além disso, a evolução dos modos de vida compreende numerosas dimensões que não têm nenhuma razão para evoluírem positivamente e ao mesmo tempo. Pode-se enriquecer às custas de um trabalho longo e mais penoso, que polui, degrada e encurta a expectativa de vida. 
Mas pode-se ganhar menos, vivendo-se melhor, com menos degradação ambiental e melhor qualidade de vida. Onde está o progresso? As “crises” ambiental, econômica e social colocam em cheque esta noção generalizadora e progressiva do progresso. Essas crises e a evolução social das sociedades “modernas” no século 20 esgotaram a força mobilizadora desta idéia. Se a noção de progresso se extinguirá no futuro próximo, não se sabe. 
  • O que se pode afirmar é que esta noção e outras que por ventura vierem a substituí-la, como o desenvolvimento sustentável, por exemplo, ocuparão doravante um lugar estratégico na análise e no debate social, porque elas articulam - ou tentam articular - duas dimensões do saber científico, ou seja, a natureza e a sociedade. 
A capacidade de integração entre essas duas dimensões será o objeto central de disputa no próximo século. Esta disputa determinará os riscos de explosão social que contém a lógica do desenvolvimento desigual, lógica essa que resta como contradição fundamental do capitalismo mundial.
  • A crise econômica dos países do “Terceiro Mundo”, durante os anos 50 mostrou, assim, que o progresso não era uma virtude natural que todos os sistemas econômicos e todas as sociedades humanas possuíam. Na verdade, este termo corresponde a uma situação histórica particular das sociedades industriais. 
Do mesmo modo, a noção de crescimento é insuficiente para dar conta das transformações estruturais dos sistemas socioeconômicos, pois apenas leva em consideração a produção sob o aspecto quantitativo. Já a noção de desenvolvimento, ao contrário, pretende evidenciar todas as dimensões - econômica, social e cultural - da transformação estrutural da sociedade. 
  • Neste sentido, o desenvolvimento remete às estruturas sociais e mentais. Nesta visão, a dimensão econômica interage de modo recíproco com os aspectos socioculturais. Na década de 1960, a via de desenvolvimento proposta ao Terceiro Mundo foi tomada de empréstimo daquela seguida pelas nações ocidentais, hoje consideradas “ricas” ou “avançadas” industrialmente. 
Aos países mais pobres, para se tornarem também “ricos” e “avançados”, era preciso imitar o processo de industrialização desenvolvido nos países ocidentais. O problema residia na maneira de “transferir” esse processo dos paí- ses avançados para os menos avançados. Essa questão deu lugar a numerosas teorias que, na sua aplicação, nenhuma mostrou real eficácia.
  • De um modo geral, as teorias desenvolvimentistas, quer sejam (neo)liberais ou marxistas, inspiram-se nas sociedades ocidentais para propor modelos para o conjunto do mundo. A idéia-mestre de desenvolvimento que fundamenta esta visão reside no paradigma do humanismo ocidental (Morin, 1977); ou seja, no desenvolvimento socioeconômico provocado pelos avanços técnico-científicos, assegurando ele próprio o crescimento e o progresso das virtudes humanas, das liberdades e dos poderes dos homens. 
O que parece emergir como verdade suprema desta visão de desenvolvimento pode ser sintetizado como: desenvolvimento técnico-científico ⇒ desenvolvimento socioeconômico ⇒ progresso e crescimento. Graças a seu caráter fluido e a seus objetivos humanistas, o termo desenvolvimento assimilou uma conotação positiva, de prejulgamento favorável: ele seria em si um bem, pois desenvolver-se seria forçosamente seguir em uma direção ascendente, rumo ao mais e ao melhor. 
  • Aqui, a analogia com o desenvolvimento dos organismos biológicos aparece claramente: se desenvolver é crescer, difundir potencialidades para atingir a maturidade. Esta analogia, no entanto, é falsa e enganosa pois, como bem sinaliza Morin (1977), cada desenvolvimento biológico é a repetição de um desenvolvimento precedente inscrito geneticamente. É, portanto, o retorno cíclico de um passado, e não a construção inédita do futuro. 
Sob essas bases há uma ruptura com a noção “oficial” de desenvolvimento, aquela que vê o desenvolvimento socioeconômico voltado necessariamente para a construção do futuro. E mais: a noção de desenvolvimento não se impõe somente como evidente, mas também como universal. 
  • O desenvolvimento é um bem para todos os lugares. É por isso que foi pensado e aplicado de maneira uniformizante. Ao invés das originalidades se exprimirem e se fortificarem, aparecem as características singulares dos povos e das culturas. É um modelo idêntico que se propaga em detrimento de todas as diferenças de situação, de regime e de cultura. 
Seguidamente a idéia de desenvolvimento é reduzida à de modernização e, em conseqüência disso, os países do Terceiro Mundo são julgados à luz dos padrões dos países desenvolvidos, todos de modernização precoce. Este etnocentrismo conduziu à aplicação no mundo inteiro de um modelo único de modernização e, portanto, a ver “em atraso” os países “subdesenvolvidos”. 
  • A fronteira entre modernização e desenvolvimento foi na verdade sempre pouco clara. A primeira indica a capacidade que tem um sistema social de produzir a modernidade; o segundo se refere à vontade dos diferentes atores sociais (ou políticos) de transformar sua sociedade. 
A modernização é um processo e o desenvolvimento uma política. Esse modelo único levou muitos países a escolher, de um lado, a racionalização e, portanto, a separação funcional do domínio econômico, racionalizado, e a vida privada, colocando entre os dois um espaço político aberto e um mercado forte; e, de outro, um aprofundamento no anti-desenvolvimento para escapar do subdesenvolvimento, ou seja, em uma recusa ao “modelo” desenvolvimentista imposto, muitas vezes caindo no isolamento, na defesa pura e simples de identidades culturais, na contracultura (Almeida, 1993). 
  • A idéia de desenvolvimento induz ao conhecimento de vias sinuosas e múltiplas da modernidade. Não existiriam outras maneiras de defender a razão sem se opor à tradição? Não seria também com o passado que se construiria o futuro, antes mesmo de se fazer tábula rasa das aquisições devidas às culturas e tradições? E em relação ao meio ambiente e recursos naturais não renováveis, não se poderia assumir uma outra postura, mais conservacionista-preservacionista, induzindo a um desenvolvimento e à exploração de uma agricultura mais sustentáveis? 
A questão que se coloca hoje diz respeito, portanto, a possibilidade de nascimento de um novo modo de desenvolvimento ou de organização social desenvolvimentista, modernizadora e nacionalista, que tenha uma base social, econômica, cultural e ambiental mais sustentável.

O Desenvolvimento Rural: 
  • Ao final da II Guerra Mundial nasce um amplo processo macroeconômico e com ele verifica-se um intenso desenvolvimento mundial. Altas taxas de crescimento vão gerar um ciclo de expansão econômica que dura até meados dos anos 70. 
Esse ciclo foi comandado pelos Estados Unidos e provocou a emergência, a reconstrução ou a reanimação econômica das nações européias abaladas pela guerra, bem como alguns anos após, também o Japão, integrando essas nações ao conjunto de países capitalistas abastados (Navarro, 1995). 
  • No campo da agricultura, a noção de desenvolvimento encontrou, no decorrer das décadas de 1950 e 1960, nos Estados Unidos e na Europa, um terreno de aplicação particularmente receptivo. Sob a ação conjugada do Estado, das indústrias agroalimentares e de uma camada de agricultores “empresariais”, o “setor” agrícola se insere cada vez mais no sistema econômico; leis são impostas nesses países visando transformar a agricultura, “setor” ideologicamente considerado “arcaico”, tradicional, em atraso, setor “moderno”, participando do crescimento econômico nacional. O desenvolvimento agrícola e rural é um instrumento desta mutação. 
Ele trouxe também algumas importantes mudanças no plano do desenvolvimento tecnológico, ou seja, um determinado crescimento econômico foi acompanhado, inegavelmente, por um grande avanço tecnológico em todos os campos, trazendo para a agricultura mundial alguns resultados que globalmente podem ser considerados satisfatórios. 
  • Para atingir um estágio urbano de modernidade, parâmetro de desenvolvimento por excelência, a agricultura buscou - e busca - integrar-se ao crescimento econômico geral aumentando a produção e sua produtividade, comprando e vendendo à indústria. Esse processo colocou a agricultura em plano secundário, introduzindo uma série de agentes econômicos que crescentemente passam a ter um papel relevante nas relações mercantis e de produção, particularmente na formação de uma indústria química que produz para a agricultura e que dela recebe e cria uma nova noção de alimentos. 
Assim, a indústria (química, especialmente) transforma-se, no final deste século, na chave da agricultura, determinando seus processos tecnológicos onde a agricultura é a base natural da produção. 
  • Se fosse dizer de outra maneira o que afirmei no parágrafo anterior, diria que difundiu-se a idéia, influenciada por muitos economistas de diferentes matizes ideológicos (marxistas, inclusive), de que a agricultura tinha um papel funcional e secundário ao “setor” industrial, ou seja, o de fornecer matérias-primas, força de trabalho barata e ser um mercado consumidor para os bens industriais. 
Por isso a industrialização tornou-se sinônimo de progresso e modernidade na sociedade industrial. O conteúdo ideológico da modernidade na agricultura passa então a incorporar quatro grandes elementos ou noções: 
  • A noção de crescimento (ou de fim da estagnação e do atraso), ou seja, a idéia de desenvolvimento econômico e político; 
  • A noção de abertura (ou do fim da autonomia) técnica, econômica e cultural, com o conseqüente aumento da heteronomia; 
  • A noção de especialização (ou do fim da polivalência), associada ao triplo movimento de especialização da produção, da dependência à montante e à jusante da produção agrícola e a inter-relação com a sociedade global; e 
  • O aparecimento de um novo tipo de agricultor, individualista, competitivo e questionando a concepção orgânica de vida social da mentalidade tradicional. 
A integração da agricultura à indústria não significa, como já se viu, simplesmente uma mudança de ordem quantitativa (comprar, produzir e vender mais), mas também uma transformação radical de suas estruturas (de produção e de comercialização, bem como sociais). 
  • Nestas condições, o termo crescimento é insuficiente para qualificar a mutação do mundo agrícola e rural, o mesmo ficando reservado ao mundo industrial, mais preocupado com o lucro. Daí a utilização de um termo mais polivalente do ponto de vista semântico (aquele de desenvolvimento), que permite integrar a noção de “promoção” individual e coletiva dos agricultores. 
Através das estruturas de promoção, vulgarização e “extensão” de novas tecnologias, desde fim dos anos 50 na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, são colocadas em funcionamento as estruturas do desenvolvimento agrícola e rural que posteriormente serão difundidas em vá- rias partes do mundo. A noção de desenvolvimento é aqui, no entanto, restritiva, visto que se aplica essencialmente às mudanças e ao progresso das técnicas. 
  • Essas noções de desenvolvimento agrícola e rural, portanto, conservam uma significação restrita: primeiro, porque as operações reconhecidas como “de desenvolvimento” referem-se quase que apenas àquelas da produção; em segundo, porque os organismos e instituições, oficialmente designados para promover as ações de desenvolvimento, somente reagrupam o conjunto de organismos que se dedicam ao desenvolvimento (econômico, geralmente). 
Na prática, entretanto, os institutos técnicos, as cooperativas, as ONGs, entre outras, também participam através de suas atividades na difusão de novas técnicas de produção, de comercialização e de gestão. Mesmo que muitas vezes seu papel não seja reconhecido e financiado oficialmente, elas são parte integrante do desenvolvimento agrícola e rural. 
  • Os planos de desenvolvimento oficiais inspirados nesta visão desenvolvimentista passam a definir as competências dos agricultores e as características do sistema técnico que eles devem colocar em operação. Os órgãos públicos de difusão de tecnologias têm a tarefa de “enquadrar” os agricultores no “modelo” de desenvolvimento idealizado, segundo os cânones da modernização. 
Trata-se da ampliação de clientela do desenvolvimento, aportando novos conhecimentos àqueles que estão em atraso na rota do progresso, ou seja, os “retardatários da modernização”. Nesta visão, o desenvolvimento é um processo considerado único, que leva do atrasado ao moderno, tendo portanto uma concepção linear. Este novo “modelo” moderno, “desenvolvimentista”, encampado pelos agricultores empresariais modernos, é o único possível e desejável. 
  • Do ponto de vista metodológico, este processo de desenvolvimento julga positiva ou negativamente essa ou aquela forma de produção agrícola ou formato tecnológico em função dos estágios de desenvolvimento, definidos em relação ao grau de intensificação. 
Uma unidade produtiva é mais ou menos moderna ou tradicional, mais ou menos atrasada ou moderna, progride mais ou menos rapidamente na via do desenvolvimento segundo o sistema de produção mais ou menos intensivo que utiliza ou põe em prática. De um lado, esta tese permite traçar um itinerário (de desenvolvimento) privilegiado que leva às formas de produção intensivas que garantem o acesso à modernidade. 
  • De outro lado, ela provoca a desvalorização de todas as formas de produção que não estão calcadas no modelo de desenvolvimento dominante, pois são os critérios de sucesso deste último que servem de critérios de avaliação e julgamento. Dentro deste modo de desenvolvimento, descrito como “moderno” ou “avançado” pela literatura, a diversidade e a diferenciação das formas de produção são consideradas como empecilhos ao desenvolvimento no eixo tradição à modernidade. 
A tese do retardamento justifica, de um lado, a sustentação (técnica, financeira, política, etc.) aportada às unidades produtivas mais “avançadas” (as mais intensivas) as quais é preciso ajudar a reproduzir-se; de outro, pela eliminação das mais “atrasadas” que não têm nenhuma chance de recuperar o atraso: é o êxodo rural que passa então a ser admitido como inexorável - e mesmo necessário - para permitir aos mais “dinâmicos” se desenvolverem em boas condições.

Da ideologia do progresso à idéia de desenvolvimento (rural) sustentável

O Desenvolvimento Rural Sustentável: 
  • A noção de desenvolvimento (rural) sustentável tem como uma de suas premissas fundamentais o reconhecimento da “insustentabilidade” ou inadequação econômica, social e ambiental do padrão de desenvolvimento das sociedades contemporâneas (Schmitt, 1995). 
Esta noção nasce da compreensão da finitude dos recursos naturais e das injustiças sociais provocadas pelo modelo de desenvolvimento vigente na maioria dos países. Mesmo que já intensamente “trabalhada” nos últimos 10 anos, demonstrando uma crescente adesão à idéia, esta é ainda uma noção genérica e difusa, pouco precisa. 
  • Transita-se, portanto, em um campo emergente e que está ainda muito sujeito a diferentes concepções e definições. No Relatório Brundtland, conhecido no Brasil pelo título Nosso Futuro Comum, publicado em 1987 como texto preparatório à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (Eco-92), a idéia de desenvolvimento sustentável aparece nos seguintes termos: é aquele capaz de garantir as necessidades das gerações futuras.
"O atendimento das necessidades básicas requer não só uma nova era de crescimento econômico para as nações cuja maioria da população é pobre, como a garantia de que esses pobres receberão uma parcela justa dos recursos necessários para manter esse crescimento (...). Para que haja um desenvolvimento global sustentável é necessário que os mais ricos adotem estilos de vida compatíveis com os recursos ecológicos do planeta, quanto ao consumo de energia, por exemplo (...) O desenvolvimento sustentável não é um estado de harmonia, mas um processo de mudança no qual a exploração dos recursos, a orientação dos investimentos, os rumos do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional estão de acordo com as necessidades atuais e futuras."
Este conceito parece dar a idéia de uma busca de integração sistêmica entre diferentes níveis da vida social, ou seja, entre a exploração dos recursos naturais, o desenvolvimento tecnológico e a mudança social. Entretanto, há ainda uma dúvida em relação a qual ator/agente caberia definir os parâmetros valorativos e políticos capazes de nortear essa integração (Schmitt, 1995). 
  • Trata-se de sustentar o quê? “Futuro comum” de quem e para quem? Nesta questão reside a principal base de conflitos entre aqueles que “disputam” o conceito e as práticas sociais e produtivas a ele circunscritas. 
O conceito de desenvolvimento sustentável abriga uma série heteróclita de concepções e visões de mundo, sendo que a maioria daqueles que se envolvem no debate em torno da questão são unânimes em concordar, em uníssono, que o mesmo representa um grande avanço no campo das concepções de desenvolvimento e nas abordagens tradicionais relativas à preservação dos recursos naturais. 
  • Neste “guarda-chuva” do desenvolvimento sustentável se abrigam desde críticos das noções de evolucionismo e modernidade, a defensores de um “capitalismo verde”, que buscam no desenvolvimento sustentável um resgate da idéia de progresso e crença no avanço tecnológico. Este grupo é integrado pelos atores “alternativos”, que buscam “inventar” um novo modo de desenvolvimento e de agricultura que seja socialmente justo, economicamente viável, ecologicamente sustentável e culturalmente aceito, recuperando técnicas, valores e tradições (Almeida, 1995a). 
Sem querer simplificar o debate sobre este importante tema, a discussão sobre o desenvolvimento sustentável hoje está polarizada entre duas concepções principais: de um lado, o conceito/idéia como sendo gestado dentro da esfera da economia, sendo com essa referência que é pensado o social. 
  • Incorpora-se, deste modo, a natureza à cadeia de produção (a natureza passa a ser um bem de capital); de outro, uma idéia que tenta quebrar com a hegemonia do discurso econômico e a expansão desmesurada da esfera econômica, indo para além da visão instrumental, restrita, que a economia impõe à idéia/conceito.
O que se pode adiantar é que esse “novo” conceito introduz elementos econômicos, sociais e ambientais que são desafiadores do ponto de vista de muitas áreas do conhecimento. A noção de sustentabilidade, tomada como ponto de partida para uma reinterpretação dos processos sociais e econômicos e de suas relações com o equilíbrio dos ecossistemas, parece enriquecedora, demandando a construção de um aparato conceitual capaz de dar conta de seus múltiplos aspectos. 
  • Essa idéia de um “novo desenvolvimento” pode remeter à sociedade a capacidade de produzir o novo, redimensionando suas relações com a natureza e com os indivíduos (Schmitt, 1995).
Agricultura e Sustentabilidade: 
  • A partir de meados da década de 1960, vários países latino-americanos engajaram-se na chamada “Revolução Verde”, fundada basicamente em princípios de aumento da produtividade através do uso intensivo de insumos químicos, de variedades de alto rendimento melhoradas geneticamente, da irrigação e da mecanização, criando a idéia que passou a ser conhecida com freqüência como aquela do “pacote tecnológico”. 
Os objetivos então estabelecidos eram condizentes com o cenário mundial da época: crise no mercado de grãos alimentícios, aumento do crescimento demográfico e a previsão, a curto prazo, de uma “catástrofe alimentar” que poderia originar convulsões em certas regiões do mundo. Alguns resultados foram obtidos, mesmo que em determinados cultivos/ atividades não tenham sido tão significativos. 
  • Todo o ideário da transformação produtiva e tecnológica da agricultura nos últimos 25 anos, particularmente a partir do período expansionista dos “anos do milagre” que caracterizou a economia brasileira do final dos anos 60 em diante, teve no padrão tecnológico produtivo americano o seu modelo (Navarro, 1995). Vários problemas, entretanto, ocorreram neste período, especialmente no que tange à desigualdade social e especialmente à sustentabilidade (econômica e ecológica) da produção agrícola no longo prazo. 
Especialmente no plano econômico, tem-se a destacar, aliado à elevação expressiva de rendimentos ou de produtividade de alguns cultivos/atividades, um encarecimento da utilização de insumos e a queda dos preços recebidos pelos agricultores. Se se toma como exemplo o caso americano (De Janvry, citado por Navarro, 1995), entre 1950 e 1968, constata-se que houve um crescimento negativo da renda total dos estabelecimentos agrícolas naquele país. 
  • Verifica-se que, quando o crescimento não é negativo, é muito pequeno, indicando um processo de desenvolvimento que reduz, ao longo do tempo, a renda dos agricultores (alguns mais, outros menos), demonstrando também que globalmente ocorre um processo de “engessamento” da agricultura e, paralelamente, uma articulação com setores agroindustriais. 
Quanto ao plano ecológico, destacam-se os problemas relacionados à dilapidação das florestas tropicais e da biodiversidade, à erosão e degradação dos solos agrícolas, à poluição e esgotamento dos recursos naturais não-renováveis, entre outros. 
  • É no entanto na eficiência energética que o modelo “convencional” de agricultura mais apresenta suas fraquezas. A partir dos anos 70 sua elevada demanda por recursos naturais e energéticos, inclusive de fontes não-renováveis, passou a chamar a atenção de ambientalistas e pesquisadores. 
Nos Estados Unidos, nesta época, surgiram alguns estudos que passaram a avaliar o balanço energético de sistemas de produção agrícola convencionais. Os resultados mostraram o enorme custo de energia externa necessária para a produção de determinados produtos - como por exemplo o milho -, energia esta geralmente proveniente de recursos não renováveis como os combustíveis fósseis e o fósforo, tornando ineficiente o seu balanço energético (Pimentel, 1973). 
  • Outros estudos americanos passaram a comparar o balanço energético dos sistemas de produção convencionais com aqueles menos produtivos por unidade de área (em quilocalorias por hectare), porém mais eficientes quanto ao retorno por unidade de energia dispendida. 
Assim, entre 1974 e 1975, um estudo comparou o rendimento energético de 16 fazendas convencionais com o de 16 fazendas alternativas, concluindo que os sistemas convencionais necessitavam 0,9 kcal para produzir 1 kg de pro- duto final, enquanto os sistemas alternativos obtinham o mesmo produto com apenas 0,38 kcal, portanto, com uma demanda energética 2,3 vezes inferior (Lockeretz citado por Ehlers, 1994). 
  • Um dos poucos estudos semelhantes no Brasil, em São Paulo, em 1980 (Castanho Filho e Chabaribery, 1981), comparou o balanço energético de 21 atividades agrícolas, totalizando 80% do valor da produção comercializada naquele estado e naquele ano. 
Concluiu-se que o rendimento energético era de aproximadamente 20%, ou seja, para cada caloria investida obtinha-se 1,2 calorias de retorno. Esses resultados, americanos e brasileiros, mostram categoricamente, portanto, que a alta dependência de insumos externos é um ponto de fragilidade das explorações agrícolas convencionais. 
  • No final da década de 1980, na literatura sobre a agricultura mundial, o qualificativo sustentável passa a atrair a atenção de um número crescente de profissionais, pesquisadores e agricultores, fazendo surgir uma infinidade de definições sobre o termo. 
É fácil perceber, através de diferentes manifestações hoje, que os termos agricultura e desenvolvimento sustentáveis indicam um anseio a um novo paradigma tecnológico que não agrida o meio ambiente, servindo para explicitar a insatisfação com a agricultura convencional ou “moderna”. 
  • Entre as diferentes visões, a estratégia de desenvolvimento agrícola sustentável tem como filosofia neutralizar ou minimizar os efeitos das perturbações antrópicas no meio ambiente. 
Essas perturbações, que tornam um agroecossistema “insustentável”, são manifestadas quando indicam, segundo Altieri (1993), a redução: 
  • Da capacidade homeostática, tanto nos mecanismos de controle de pragas como nos processos de reciclagem de nutrientes; 
  • Da capacidade “evolutiva” do sistema, em função da erosão ou da homogeneização genética provocada pelas monoculturas; 
  • Da disponibilidade e qualidade de recursos que atendam as necessidades básicas (acesso à terra, água, etc.); e 
  • Da capacidade de utilização adequada dos recursos disponíveis, principalmente devido ao emprego de tecnologias impróprias. 
Por influência do debate americano sobre a questão, a agricultura sustentável ganhou uma série de definições,15 incorporando os seguintes itens: 
  • Manutenção a longo prazo dos recursos naturais e da produtividade agrícola; 
  • Mínimo de impactos adversos ao ambiente; 
  • Retornos financeiro-econômicos adequados aos agricultores; 
  • Otimização da produção das culturas com o mínimo de insumos químicos; 
  • Satisfação das necessidades humanas de alimentos e de renda; e 
  • Atendimento das necessidades sociais das famílias e das comunidades rurais. 
As várias definições de agricultura sustentável demonstra, de certo modo, o caráter polêmico em torno do termo. Esta diversidade pode ser demonstrada através do que não é agricultura sustentável, fornecida pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos:
"[ela não é] uma ruptura com a agricultura moderna; ...[não é] outro nome para agricultura orgânica; ...[não é] somente para pequenos produtores; ...[não é] somente para propriedades de criação animal; ...[não é] um passo atrás; ...[não é] uma panacéia para todos os problemas ambientais; ...[não é] uma solução completa para todos os problemas de lucratividade agrícola; ...[não é] uma solução para os problemas orçamentários do Departamento de Agricultura."
No que se refere às práticas agrícolas e à utilização dos recursos naturais, muitas definições incluem a redução do uso de agroquímicos e de fertilizantes sintéticos solúveis, o controle da erosão, a rotação de culturas, a integração lavoura-pecuária e a busca de novas fontes de energia (Ehlers, 1994). 
  • Indubitavelmente, como já referido anteriormente, os conceitos de desenvolvimento agrícola sustentável incorporam, de um modo geral, as preocupações de integrar a produtividade dos sistemas agrícolas a aspectos econômicos, sociais e ambientais. Altieri (1989) já se referia à sustentabilidade como a habilidade de um agroecossistema em manter a produção através do tempo, face a distúrbios ecológicos e pressões socioeconômicas de longo prazo. 
Este autor apresenta a agroecologia como um paradigma técnico-científico capaz de guiar a estratégia de desenvolvimento rural sustentável, pois essa disciplina estuda os sistemas agrícolas através de uma perspectiva ecológica e socioeconômica.
  • O objetivo da agricultura sustentável, assim, é a manutenção da produtividade agrícola com o mínimo de impactos ambientais e com retornos financeiro-econômicos adequados, que permitam diminuir a pobreza e atender as necessidades sociais da população (Altieri, 1993; Ehlers, 1994). 
No Brasil, as ONGs são as precursoras na utilização do conceito de agricultura e desenvolvimento rural sustentável (Almeida, 1995). Essas organizações tendem a seguir a definição geral da noção de agricultura sustentável o que o Alternative Treaty on Sustainable Agriculture (Global Action, 1993) estabelece como:
"um modelo social e econômico de organização baseado na visão eqüitativa e participativa do desenvolvimento e dos recursos naturais, como fundamentos para a atividade econômica. A agricultura é sustentável quando ela é ecologicamente bem fundada, economicamente viável, socialmente justa, culturalmente apropriada e baseada na abordagem holística."
No Brasil, inicialmente, a agricultura sustentável estava muito ligada às tecnologias “alternativas” e como resposta aos problemas ambientais e sociais do desenvolvimento das tecnologias “modernas” (Almeida, 1993).
  • Segundo o Centro de Tecnologias Alternativas Populares, a agricultura sustentável é aquela que está voltada para a produção de alimentos saudáveis para a população, com base em sistemas diversificados que restaurem as condições ecológicas da produção (...) encarando os sistemas agrários como ecossistemas cultivados, cuja reprodução ecológica e social deve balizar os métodos de exploração econômica (CETAP, 1995). 
Portanto, segundo essa entidade, é uma definição que incorpora a visão ecológica, a perspectiva social e o enfoque sistêmico. Hoje, mesmo os organismos governamentais como a EMBRAPA, por exemplo, reconhecem a agricultura sustentável e propõem oficialmente algumas iniciativas. 
  • Segundo Flores et alii (1991), no conceito de agricultura sustentável reside a idéia central do uso de tecnologias adequadas às condições do ambiente regional e mesmo local, e da previsão e prevenção dos impactos negativos, sejam eles sociais, econômicos e ambientais (...) O objetivo final é a garantia de que os agroecossistemas sejam produtivos e rentáveis ao longo do tempo (...). 
Ressaltam ainda esses autores que é imprescindível a conciliação de produtividades elevadas e a conservação dos recursos naturais, sendo este o caminho a ser trilhado pela agricultura sustentável, introduzindo o conceito de sustentabilidade como o novo condicionante da competitividade e da eficiência.

Limites e Desafios:
Para a Agricultura e o Desenvolvimento Sustentáveis: 
  • Observando a diversidade de definições acerca da noção de sustentabilidade para a agricultura e o desenvolvimento rural, percebe-se múltiplas imprecisões conceituais, dúvidas e até mesmo contradições. 
Esta diversidade, na agricultura, é devida, por um lado, à generalização das práticas antes designadas como “alternativas” e, por outro, viria de uma mudança da agricultura convencional ou “moderna” em uma direção ainda não muito clara, mas que combinaria vantagens dessas duas vertentes (Ehlers, 1994). 
  • Até o momento, o debate político e científico no entanto não superou o impasse entre as duas posições principais. No caso da noção do desenvolvimento sustentável as contradições são semelhantes àquelas da agricultura sustentável, trazendo consigo, talvez, as incertezas deste conceito que surgiu primeiro, e que influenciou aquele. 
Neste caso, a dificuldade é ainda maior pois não existe consenso nem mesmo em torno do próprio conceito e dos princípios do “desenvolvimento”. Por ter uma ampla área de abrangência, a idéia de desenvolvimento sustentável está a exigir o estabelecimento de parâmetros bem mais complexos do que aqueles pensados para a agricultura. 
  • E por ser o desenvolvimento um termo muito elástico, permite abrigar diferentes concepções de crescimento econômico e da utilização/gestão dos recursos naturais, gerando dúvidas, não apenas conceituais mas, principalmente, relativas às implicações práticas desse termo. 
Os organismos “oficiais” têm se esforçado para alcançar uma conceituação de desenvolvimento sustentável, capaz de ser aceita pela maioria dos atores e agentes econômicos envolvidos com o desenvolvimento das sociedades contemporâneas. 
  • No entanto, estes esforços não têm sido promissores, o que se constitui em um desafio para aqueles que estão empenhados na busca do desenvolvimento. A definição que mais se aproxima do consenso almejado é aquela do Relatório Bruntland. Também não há nenhum consenso acerca das vias de crescimento econômico que devem ser seguidas na perspectiva do desenvolvimento sustentável. 
Retomando uma questão já apresentada anteriormente (Redclift, 1993), estas vias deveriam seguir aquelas traçadas pelos países mais avançados industrialmente, ou as dos países pobres ou “em desenvolvimento”? Para alguns (O’Connor, 1993), se analisada por critérios ambientais, tais como a utilização de recursos não renováveis e a poluição, os países do Hemisfério Sul estariam mais próximos da sustentabilidade.  A concepção “econômica” do desenvolvimento sustentável aponta para novos mecanismos de mercado como solução para condicionar a produção à capacidade de suporte dos recursos naturais, inclusive aqueles de taxação da poluição. 
  • Entretanto, esse direcionamento implica alguns questionamentos: esses mecanismos seriam realmente capazes de converter a lógica predatória do mercado em um freio à degradação ambiental? 
  • Quem assumiria as conseqüências sociais desses custos adicionais? 
  • Quem assume o preço da preservação ambiental? 
  • Persistindo a dinâmica atual, esse repasse de custos à sociedade não aumentaria os níveis de exclusão e desigualdade no acesso aos bens produzidos pelo “mercado verde”, especialmente às populações do Terceiro Mundo? 
Enfim, mesmo que “maquiado”, com o “rosto” de desenvolvimento sustentável, não permaneceria a lógica, essencialmente predatória, que promoveu em grande parte a atual crise social e ambiental? Um outro pólo, que propõe um desenvolvimento sustentável que garanta a diversidade democrática, contrapõe-se a uma “expansão desmesurada da esfera econômica” (Carvalho, 1991). 
  • Aqueles que defendem essas posições acham que, por mais que os mecanismos do desenvolvimento sustentável possam minimizar o impacto da produção e do consumo sobre os recursos naturais, são apenas dispositivos construídos dentro de uma racionalidade econômica que deveriam antes de tudo estar submetidos às decisões políticas das sociedades. Seria importante, pois, “inverter a premissa que está na base do pensamento economicista... 
A economia não deve ser tomada como instituinte do campo social, mas instituída por este; as alternativas para o futuro são escolhas que devem dar-se fundamentalmente no campo da política” (Carvalho, 1991). Portanto, para essa concepção a democracia, a autodeterminação dos povos, o respeito à diversidade cultural, à biodiversidade natural e à participação dos cidadãos, nas suas diferentes formas, resultam de opções políticas, implicando no deslocamento da racionalidade econômica para o campo da ética. 
  • A discussão, pois, passa a ser referida aos valores que determinam concepções do que sejam essas “necessidades humanas” (Carvalho, 1991). No que se refere à agricultura sustentável, parece ser no campo científico - mais propriamente no método - que residem as principais dificuldades, pois falta acúmulo de conhecimentos sobre a noção e, conseqüentemente, carece-se de proposta de maior legitimidade técnico-científica. 
Por outro lado, a agricultura sustentável já conseguiu mostrar alguns resultados no campo da experimentação (técnico-produtiva e social), o que parece suficiente para justificar e legitimar socialmente a justiça dos propósitos da eqüidade e da preservação ambiental (Almeida, 1995b). Outra dificuldade reside no caráter interdisciplinar da noção de agricultura sustentável. Áreas do conhecimento como a biologia, ecologia, agronomia, sociologia, economia, entre outras, devem ser integradas para uma maior e melhor compreensão dos sistemas agrícolas. 
  • Mas a “comunidade” científica, preocupada com a mono-disciplinaridade, e devido a sua grande heterogeneidade social e múltiplos interesses científico-acadêmicos, ainda não se voltou para essa perspectiva, devendo ser reciclada para melhor adaptar-se às novas tendências da pesquisa. E ainda: o que se vê, quando se fala de desenvolvimento sustentável, são preocupações e discussões mais voltadas para o “natural” e menos para o “social”. 
A “questão” da erosão dos solos, da contaminação dos recursos hídricos e a destruição das florestas têm predominado no debate. A confusão/imprecisão conceitual da agricultura sustentável permite agregar em torno de si diferentes posições, desde aqueles que propõem a redução do uso de insumos químicos, até os que buscam alternativas novas e mais radicais para as práticas produtivas e sociais, tentando substituir aquelas que a agricultura convencional implantou nas últimas décadas. 
  • Segundo Veiga (1992), esse conjunto de posições abrange uma diversidade de tendências religiosas, ideológicas e visões de mundo que muitas vezes chegam a ser antagônicas. O debate atual em torno da agricultura sustentável parece estar polarizado por duas vertentes: de um lado, aqueles que pensam esse tipo de agricultura como objetivo, projeto, e, de outro, os que querem estabelecer e implantar um conjunto de práticas ou regras produtivas mais “ambientalistas” se comparadas com o modelo convencional. 
Este debate superará o impasse entre essas duas correntes? Por enquanto, a agricultura sustentável é apenas um termo e não uma prática em andamento (Ehlers, 1994; Almeida, 1996).
  • O que se pode pensar é que haverá certamente uma “evolução” do atual modelo de produção agrícola, em uma direção ainda não muito clara mas que certamente deverá combinar elementos de várias propostas alternativas e de um “melhoramento” das práticas convencionais. 
Alguns desafios estão postos àqueles que lutam por esta nova forma de fazer agricultura: por exemplo, 
  • É possível conciliar a máxima que atende pelos apelos do socialmente equitativo, do ambientalmente equilibrado e o do economicamente eficiente e produtivo? É possível traduzir todo um savoir-faire em novos formatos tecnológicos que assegurem a harmonia entre esses três objetivos fundamentais?; 
  • É possível dar prioridade à pesquisa, passando da perspectiva “da produtividade” para aquela “da preservação” dos recursos naturais, analisando, prevendo e evitando sérios impactos ao meio ambiente?; 
  • Como desenvolver novas formas de atuação institucional no terreno do ensino, da pesquisa, da extensão e da organização da produção?; 
  • Como integrar as diferentes disciplinas na geração de novos conhecimentos?; 
  • Como construir indicadores de sustentabilidade que permitam encurtar o caminho na direção da multiplicação de definições normativas e operacionais mais esclarecedoras e frutíferas?; e, por fim, 
  • Como tratar, no mesmo nível, as questões técnicas, ambientais e sociais? 
Mas o grande desafio, talvez, resida na capacidade das forças sociais envolvidas na busca de outras formas para o desenvolvimento de imprimir sua marca nas políticas públicas, para que estas venham a afirmar política, econômica e socialmente a opção pela agricultura familiar, forma social de uso da terra que melhor responde a noção de sustentabilidade e as necessidades locais, regionais e do país (Programa Tecnologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, 1995). 
  • O sucesso das iniciativas atuais por um novo e diferente modo de desenvolvimento está na razão direta dos resultados obtidos nesta direção, ou seja, no fortalecimento dos processos organizativos da agricultura familiar nas suas diversas formas associativas. 
Por fim, voltando à idéia de desenvolvimento sustentável, o caminho que me parece ser ideal a ser seguido é aquele em que as necessidades dos grupos sociais possam ser atendidas a partir da gestão democrática da diversidade, nunca perdendo de vista o conjunto da sociedade. 
  • A direção, pois, do desenvolvimento sustentável deixa de ser aquela linear, única, que assumiu o desenvolvimento dominante até nossos dias; não mais a marcha de todos em uma só direção, mas o reconhecimento e a articulação de diferentes formas de organização e demandas como base, sustentáculo a uma verdadeira sustentabilidade. 
O “modelo” de desenvolvimento buscado seria então um modelo rico em alternativas, capaz de enfrentar com novas soluções a crise social e ambiental. É preciso conceber um desenvolvimento que tenha nas prioridades sociais sua razão-primeira, transformando, via participação política, excluídos e marginalizados em cidadãos. Esta me parece uma verdadeira chance para a reorganização conseqüente da sociedade, visando à sustentação da vida e a manutenção de sua diversidade plena.

Referência: 

ACSELRAD, Henri. Desenvolvimento sustentável: a luta por um conceito, Proposta, Rio de Janeiro: FASE, n.56, p. 5-8, mar. 1993. 
ALMEIDA, Jalcione. Projetos agrícolas alternativos e de diversificação: em direção ao fim de um modelo de desenvolvimento? Paris: Mémoire de D.E.A., set.1990. 
———. Agriculteurs de la deuxième chance: un regard sur les (ré)actions de contestation et la mouvance alternative dans l’agriculture du Brésil Méridional. Nanterre: Université de Paris X, 1993. (Tese de doutorado.) 
———. Significados sociais da agroecologia e do desenvolvimento sustentável no espaço agrícola e rural do Sul do Brasil. Relatório CNPq, Porto Alegre, set. 1995a. 
———. O problema da validação das tecnologias “alternativas” na agricultura. Trabalho apresentado na Conferência Internacional sobre Tecnologia e Desenvolvimento Rural Sustentável. Porto Alegre, 18-22 de setembro, 1995b. (Datilog.) 
———. Significados sociais, desafios e potencialidades da agroecologia. Porto Alegre, 1996. [In: FERREIRA, Angela D.; BRANDEMBURG, Alfio. Outra Agricultura. Curitiba, UFPR, em preparação. ] 
ALTIERI, Miguel. Sustainability and the rural poor: a Latin American perspective. In: ALLEN, P. Food for the future. New York: John Wiley & Sons, 1993. p.193-209. 
———. Agroecologia, as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989. 
BRACHET, Philippe. Science et Sociétés: concepts, thèmes, fondateurs. Publisud, 1993. 
BRUSEKE, Franz J. Desenvolvimento sustentável: um desafio para as ciências. Trabalho apresentado no XVIII Encontro Anual da Anpocs, Caxambú: MG, nov.1994. 
CARVALHO, Isabel C.M. Os mitos do desenvolvimento sustentável. PG 75, p.17-21, nov.-dez. 1991.
CENTRO DE TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS POPULARES. Agricultura familiar e desenvolvimento sustentável (versão preliminar). Pontão: CETAP, maio 1995. (Datilog.) 
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1988. 
DURKHEIM, Emile. Les règles de la méthode sociologique. 2.ed. Paris: PUF, 1949. 
EHLERS, Eduardo M. O que se entende por agricultura sustentável? São Paulo: Procam/USP, nov.1994. (Dissertação de mestrado.) 
GLOBAL ACTION, Sustainable Agriculture and Food Security. Briefing Between the Summits Dow to Earth, Copenhagen, dec.1993. (Mimeo.) 
GOODMAN, David; SORJ, Bernardo; WILKINSON, John. Da lavoura às biotecnologias. São Paulo: Ed. Campus, 1990. 
FLORES, Murilo X. et alii. Pesquisa para a agricultura auto-sustentável, Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, v.29, n.1, p.1-21, jan./mar 1991. 
KITAMURA, Paulo C. Desenvolvimento sustentável: uma abordagem para as questões ambientais da Amazônia. Campinas: Unicamp, 1994. (Tese de doutorado.) 
———. A agricultura e o desenvolvimento sustentável, Agricultura Sustentá- vel, p.27-32, jan./abr. 1994. 
MORIN, Edgar. Le développement de la crise du développement. In: MENDES, C. (dir.). Le mythe du développement. Seuil, 1977. 
NAVARRO, Zander. Desenvolvimento rural sustentável - uma introdução. Palestra proferida no Encontro Regional sobre Tecnologia e Desenvolvimento Rural Sustentável. Porto Alegre, 24 de Julho de 1995. Anotações. 
O’CONNOR, James. Is sustainable capitalism possible?. In: ALLEN, P. Food for the future. New York: John Wiley e Sons, 1993. p.125-137. 
PIMENTEL, David et alii. Food production and energy crisis. Science, n.182, p. 443-449, 1973. 
PROGRAMA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL. Agenda de Compromissos. Porto Alegre: Conferência Internacional, set. 1995. 
REDCLIFT, Michael. Sustainable development: exploring the contradictions. London and New York: Methuen, 1987. 
RIBEIRO, Gustavo L. Uma introdução para pensar o setor ambiental. In: ROS FILHO, Luis C. Financiamentos para o meio ambiente: recursos externos para o setor ambiental no Brasil. Brasília: Instituto de Estudos Amazônicos e Ambientais, 1994. 
SCHMITT, Claudia J. Sociedade, natureza e desenvolvimento sustentável: uma abordagem preliminar. Porto Alegre: PPGS/UFRGS, março 1995. (Datilog.) 
U.S. DEPARTMENT OF AGRICULTURE. The basic principles of sustainable agriculture. Washington, D.C., 1991. 
VALCESCHINI, Egídio. Le développement: histoire d’une idée. In: Cahiers du CNEEJA, Agriculteurs en question. Modèles de développement, changement social, syndicalisme agricole, 1985.
VEIGA, José E. O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica. São Paulo: Hucitec/Editora da USP, 1991. 
———. A transição para a agricultura sustentável nos EUA. Comunicação para a 9a Conferência da IFOAM, São Paulo, nov. 1992. (Mimeo.)

Da ideologia do progresso à idéia de desenvolvimento (rural) sustentável