domingo, 14 de agosto de 2016

Urbanização de Risco: expressão territorial de uma ordem urbanística excludente e predatória

Urbanização de Risco: 
Expressão territorial de uma ordem urbanística excludente e predatória

Ana Margarida Koatz
Arquiteta e Urbanista, Assistente Técnica do Departamento de Planejamento Urbano da Secretaria Nacional de Programas Urbanos.
  • A imensa e rápida urbanização pela qual passou a sociedade brasileira foi certamente uma das principais questões sociais experimentadas no país no século XX. 
Enquanto em 1960, a população urbana representava 44,7% da população total – contra 55,3% de popula- ção rural –, dez anos depois, essa relação se invertera, com números quase idênticos: 55,9% de população urbana e 44,1% de população rural. 
  • No ano 2000, 81,2% da população brasileira vivia em cidades. Essa transformação, já imensa em números relativos, torna-se ainda mais assombrosa se pensarmos nos números absolutos, que revelam também o crescimento populacional do país como um todo: nos 36 anos entre 1960 e 1996, a população urbana aumentou de 31 milhões para 137 milhões, ou seja, as cidades receberam 106 milhões de novos moradores no período. 
A urbanização vertiginosa, coincidindo com o fim de um período de acelerada expansão da economia brasileira, introduziu, no território das cidades, um novo e dramático significado: mais do que evocar progresso ou desenvolvimento, elas passam a retratar – e reproduzir – de forma paradigmática as injustiças e desigualdades da sociedade. 
  • Estas se apresentam no território sob várias morfologias, todas elas bastante conhecidas: nas imensas diferenças entre as áreas centrais e as periféricas das regiões metropolitanas; na ocupação precária do mangue em contraposição à alta qualidade dos bairros da orla nas cidades de estuário; na eterna linha divisória entre o morro e o asfalto; e em muitas outras variantes dessa cisão, presentes em cidades de diferentes tamanhos, diferentes perfis econômicos e regiões diversas.
O quadro de contraposição entre uma minoria qualificada e uma maioria com condições urbanísticas precárias é muito mais que a expressão da desigualdade de renda e das desigualdades sociais: ela é agente de reprodução dessa desigualdade.
  • Em uma cidade dividida entre a porção legal, rica e com infraestrutura e a ilegal, pobre e precária, a popula- ção que está em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso às oportunidades de trabalho, cultura ou lazer. 
Simetricamente, as oportunidades de crescimento circulam nos meios daqueles que já vivem melhor, pois a sobreposição das diversas dimensões da exclusão incidindo sobre a mesma popula- ção faz com que a permeabilidade entre as duas partes seja cada vez menor. 
  • Esse mecanismo é um dos fatores que acabam por estender a cidade indefinidamente: ela nunca pode crescer para dentro, aproveitando locais que podem ser adensados, é impossível para a maior parte das pessoas o pagamento, de uma vez só, pelo acesso a toda a infraestrutura que já está instalada. 
Em geral, a população de baixa renda só tem a possibilidade de ocupar terras periféricas – muito mais baratas porque comumente não têm qualquer infraestrutura – e construir aos poucos suas casas. 

Urbanização de Risco: 
Expressão territorial de uma ordem urbanística excludente e predatória

  • Ou ocupar áreas ambientalmente frágeis, que teoricamente só poderiam ser urbanizadas sob condições muito mais rigorosas e adotando soluções geralmente dispendiosas, exatamente o inverso do que acaba acontecendo. 
Tal comportamento não é exclusivo dos agentes do mercado informal: a própria ação do poder público muitas vezes tem reforçado a tendência de expulsão dos pobres das áreas mais bem localizadas, à medida que procura os terrenos mais baratos e periféricos para a construção de grandes e desoladores conjuntos habitacionais. 
  • Desta forma, vai se configurando uma expansão horizontal ilimitada, avançando vorazmente sobre áreas frágeis ou de preservação ambiental, o que caracteriza nossa urbanização selvagem e de alto risco. Esses processos geram efeitos nefastos para as cidades como um todo. 
Ao concentrar todas as oportunidades de emprego em um fragmento da cidade, e estender a ocupação a periferias precárias e cada vez mais distantes, essa urbanização de risco vai acabar gerando a necessidade de transportar multidões, o que, nas grandes cidades, tem gerado o caos nos sistemas de circulação. 
  • E quando a ocupação das áreas frágeis ou estratégicas, sob o ponto de vista ambiental, provoca enchentes ou erosão, é evidente que quem vai sofrer mais é o habitante desses locais, mas as enchentes, a contaminação dos mananciais e os processos erosivos mais dramáticos atingem a cidade como um todo. 
Além disso, a pequena parte melhor infraestruturada e qualificada do tecido urbano passa a ser objeto de disputa imobiliária, o que acaba também gerando uma deteriora- ção dessas partes da cidade. Esse modelo de crescimento e expansão urbana, que atravessa as cidades de Norte a Sul do país, tem sido identificado, no senso comum, como “falta de planejamento”. 
  • Segundo essa acepção, as cidades não são planejadas e, por essa razão, são “desequilibradas” e “caóticas”. Entretanto, trata-se não da ausência de planejamento, mas, sim, de uma interação bastante perversa entre processos socioeconômicos, opções de planejamento e de políticas urbanas e práticas políticas, que construíram um modelo excludente em que muitos perdem e pouquíssimos ganham.

Urbanização de Risco: 
Expressão territorial de uma ordem urbanística excludente e predatória