sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Inter-relações entre a Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador e a Atenção Básica de Saúde no SUS

Inter-relações entre a Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador 
e a Atenção Básica de Saúde no SUS

Lia Giraldo da Silva Augusto
Médica. Pesquisadora Titular do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães da Fiocruz – Recife, Pernambuco.
  • O Brasil adotou uma estratégia de atenção básica à saúde, mediante a expansão dos Programas de Agentes Comunitários e de Saúde da Família (PSF), para cumprir os dispositivos constitucionais do direito de todos aos serviços de saúde, traduzido pelo princípio da universalidade no Sistema Único de Saúde. O PSF é estruturado com base na territorializa- ção, onde o território considerado é o espaço adstrito a uma Unidade Básica de Saúde (UBS). 
São utilizados indicadores sociais e demográficos para implantação do número de equipes para atendimento, incorporando, dessa forma, o princípio da equidade, uma vez que as áreas mais carentes e mais populosas recebem maior número de equipes por UBS. 
  • No PSF, de modo geral, o território tem um significado restrito à organização das atividades prescritas à sua equipe, segundo critérios de cobertura estabelecidos no nível central para uma dada “microárea”. 
O conceito de território utilizado é apenas um operador administrativo. Nesse sentido, pensamos que para a atenção básica em saúde o conceito de território deveria ter um sentido mais amplo que aquele que lhe é dado pelo atual desenho do PSF. Embora o PSF tenha servido para que o SUS cumpra o princípio da universalidade, devemos reconhecer que pouco se avançou para cumprir a integralidade da atenção. 
  • No entanto, por sua capilaridade social, o PSF tem grande potencial para cumprir também com o princípio da integralidade das ações, especialmente daquelas relacionadas à promoção, proteção e cuidados da saúde e à prevenção das situações de risco presentes no ambiente onde vivem e trabalham as pessoas. 
A missão do PSF é muito ampla e, certamente, a pressão de atendimento e assistência sobre suas equipes de trabalho é muito grande, seja pelas demandas reais da população, seja pela forma verticalizada como se estrutura. Isto leva as equipes a priorizarem o atendimento estrito ao que o Ministério da Saúde espera como produtos do PSF. 
  • Há claramente um paradoxo entre a missão e a estrutura utilizada para sua execução. A prescrição normatizada para as ações do PSF para todo o território nacional não diferencia a diversidade dos contextos socioambientais em que vivem as comunidades. Há uma burocratização do programa e um esvaziamento das potencialidades locais frente às demandas centrais. 
A esperada horizontalidade mediante a articulação das redes sociais locais não ocorre, e o que se constata na maioria das avaliações realizadas sobre a resolutividade do PSF é sua baixa efetividade, até mesmo para aquelas ações prescritas pelo Ministério da Saúde. 
  • O objetivo deste texto não é fazer uma avalia- ção do PSF e apontar suas dificuldades de concepção e operacionalização. Pretendemos, neste texto, mostrar como um outro conceito de território poderia ajudar a superar as dificuldades apontadas tanto na concepção como na operacionalização das ações de Atenção Primária à Saúde. 
O território é um espaço dinâmico, determinado pelas relações sociais e pelas lógicas da sociedade e da natureza, que são interdependentes e inseparáveis. O território, assim como todo o ser humano, é 100% cultura e 100% natureza. A natureza transformada pela cultura e pela sociedade em processos históricos conforma os espaços de desenvolvimento humano que denominamos território. 
  • Essa concepção é um legado de muitos geógrafos e pensadores. Milton Santos, grande geógrafo brasileiro, é a maior expressão intelectual dessa compreensão. Na saúde, tivemos outros pensadores que também pensaram o território para além de um espaço meramente físico. Podemos lembrar com orgulho de Josué de Castro em sua “Geografia da fome”. 
Pretendemos aqui apresentar um conceito de território mais amplo, que transcende o aspecto fí- sico do espaço utilizado apenas para definir fronteiras político-administrativas, ou de exercício de poderes ou de dominação. Esse conceito antigo de território, ainda em uso pelo Estado, na verdade, tem uma origem privatista. 
  • Hoje, vemos, por exemplo, o uso desse conceito de território para atender interesses do narcotráfico. Territórios de poder de um dado vereador, deputado, senador, são exemplos de nosso cotidiano. Os velhos currais eleitorais de certos parlamentares ou governantes têm a fun- ção clientelista de manutenção de poderes privados. Esse conceito está presente na história de ocupa- ção, de colonização, de invasão, de escravidão. 
O Sistema Único de Saúde guarda, em seus princípios e diretrizes, conceitos avançados de cidadania, que vão em direção à emancipação, autonomia e liberdade. Por essa razão, é fundamental operar com conceitos adequados a um modo de planejar, gestar e atuar no âmbito público e democrático. O conceito de território desenvolvido por Milton Santos nos parece mais apropriado. 
  • Então, perguntamos: como as ações de Atenção Básica (ou Primária) de Saúde, com base no conceito de território socialmente dinamizado pelas forças sociais, podem atuar sobre aqueles condicionantes que precarizam a saúde, garantindo assim medidas de promoção proteção e cuidado da saúde? 
Não se trata aqui de dar receita, um roteiro ou outra norma de procedimentos. É necessário empoderar os profissionais de saúde e a população de seus direitos e deveres, e aqui estamos falando de cidadania. 
  • Esse é um compromisso primeiro das políticas sociais em que se inscreve o SUS e toda a sua estrutura. É preciso auscultar as comunidades, compreender suas demandas, reconhecer tecnicamente os problemas de saúde das pessoas em seu contexto de vida. Chamamos a esse contexto de ambiente de vida. 

Inter-relações entre a Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador 
e a Atenção Básica de Saúde no SUS

  • O ambiente também é outro conceito que precisa ser ampliado, pois, assim como o território, ele é uma resultante de interações. A velha forma de dividir o ambiente em compartimentos como água, solo, ar, flora, fauna tornando-os estanques é a mesma base de um pensar fragmentado, o mesmo que se faz com o corpo humano (em cabeça, tronco e membros), sem tratar das relações que garantem a sua integralidade, como se pudesse cada compartimento ou parte funcionar independentemente um do outro. Esse esquema reduzido empobrece o pensamento que tem orientado as ações de saúde na prática tanto dos serviços de saúde como de outros setores, apesar dos avanços proporcionados pela Constituição e pelo conhecimento científico. 
Deveríamos perguntar a quem interessa essa fragmenta- ção? No mínimo, ousamos dizer que interessa a manutenção do status quo, de onde originam todas as desigualdades sociais e degradação ambiental. O ambiente não é uma simples externalidade ou aquilo que está de fora. 
  • O ambiente não é uma dimensão “dada” que transcende a nossa vontade, ao contrário, é fruto da vontade humana. O ambiente não é uma fatalidade ou uma dimensão que está fora de nosso alcance, ou que não nos pertence, ou que nada tem a ver com a saúde. 
O ambiente tem um caráter mais global e contínuo em termos de materiais, fluxo de energias e de afetividades para manutenção da vida, tanto biológica como social e cultural, e que se expressam nos territórios de forma a produzir elementos de bem estar ou de desequilíbrios que geram nocividades para o ecossistema em que vivem todos os seres vivos, incluindo o ser humano. 
  • Uma segunda importante atitude dos profissionais de saúde é fazer o reconhecimento dos contextos socioambientais em que vive e trabalha a população, identificando neles os problemas geradores de nocividades tanto para a saúde humana como para o ambiente. Precisamos, portanto, de um operador ecossistêmico para tratar os problemas de saúde em sua dimensão coletiva. 
É preciso estabelecer processos de compreensão coletivos no cotidiano do trabalho das equipes de saúde pública, especialmente no nível local onde acontecem as ações voltadas à promoção da saúde e de prevenção de riscos. Outro requisito das ações no território é o reconhecimento de que há muitos saberes a serem mobilizados para esse enfrentamento. 
  • Não existe nenhum saber ou especialidade autossuficiente para tratar de temas de saúde pública. Também não pode ser papel de um único setor ou só da esfera governamental atender aos problemas de saúde apresentados pelas coletividades humanas. 
Os requisitos da interdisciplinaridade e da intersetorialidade são, sem dúvida, uma premissa guia do planejador, do gestor e dos profissionais de saúde. Certamente, estes requisitos não podem ser seguidos apenas pelos profissionais de saúde. Todas as esferas governamentais e a sociedade devem estar abertas para esse modo operante de exercer a missão pública de proteção da vida. Trata-se, portanto, de um compromisso ético. 
  • Para isso, precisamos de uma reforma profunda nas consciências que acreditam que um mundo melhor é possível. Para ilustrar essas proposições, citamos como exemplo um problema de saúde pública provocado pela circulação do vírus da dengue em áreas onde está presente o mosquito Aedes aegypti, onde vive o ser humano suscetível a esse vírus. 
A doença dengue é um resultado da interação entre todos esses elementos, cada um com sua complexidade, mas que são interdependentes. Então, nunca será possível eliminar o mosquito, especialmente pelo uso de venenos? Por quê? O Aedes aegypti é um ser vivo com grande robustez biológica, bem adaptado ao território e ao modo de vida humano, que conformam um ambiente propício para a sua proliferação.
  • A superpopulação do mosquito vetor na presença de pessoas infectadas pelo vírus produz um ambiente em que o processo de transmissão na população ocorre, promovendo daí a disseminação do vírus, e desencadeando a doença e a epidemia. 
Como vemos, o ambiente aparece não só como um mediador, ou algo externo, mas como uma condição central ao processo de determinação da infecção humana e dos surtos epidêmicos. Eleger o vetor (um ser vivo) como “o único elo vulnerável”, como é dito e redito nas normas oficiais para o controle da doença, tem levado as autoridades públicas a escolherem um único meio de controlar a doença. Isto é, o alvo é o vetor. Essa decisão com base em uma premissa reducionista leva a uma segunda decisão: usar um “meio eficaz de eliminar o vetor”.
  • Ora, o mercado dos inseticidas tomou conta não só dos métodos produtivos desses venenos na agricultura, mas também na saúde pública. Foi criado um mito revestido de “cientificidade”. A despeito dos milhares de toneladas de inseticidas e larvicidas aplicados no combate ao vetor, na prática, o que vemos é a rápida expansão de sua infestação para quase todo o território nacional e a recorrência de dramáticos surtos de dengue em diversas cidades brasileiras. 
Substituir um veneno por outro mais potente não nos parece o melhor caminho, especialmente diante da incerteza de seus impactos para a saúde humana, para o meio ambiente e ainda sobre sua eficácia. Tudo isso sem contar que, na operacionalização de controle da dengue, a Atenção Primária em Saúde, na prática, se resume à prescrição de sintomáticos. 
  • Como este, poderíamos elencar um grande conjunto de problemas de saúde que se beneficiaria de ações integradas. Nessa perspectiva, a internalização do ambiente onde vivem e trabalham as pessoas das comunidades sob um planejamento territorial intersetorial é um avanço que se requer para o Sistema Único de Saúde
Referências Bibliográficas:

AUGUSTO, LGS.; CARNEIRO, RM.; FLORÊNCIO, L. Pesquisa (ação) em saúde ambiental. Recife: Ed. Universitária, UFPE, 2005. 
AUGUSTO, LGS.; BELTRÃO, AB. Atenção Primária à Saúde. Território, Ambiente e Integralidade em Saúde. Recife: Ed. Universitária, UFPE, 2008. 
AUGUSTO, LGS.; CARNEIRO, RM.; MARTINS, PH. Abordagem ecossistêmica em saúde. Ensaios para o Controle da Dengue. Recife: Ed. Universitária UFPE, 1ed. 2001, 2ed. 2005.

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