terça-feira, 5 de abril de 2016

Solidão e Liberdade: notas sobre a contemporaneidade de Wilhelm von Humboldt:

Ciência, Ética e Sustentabilidade 

Roberto S. Bartholo Jr.
para Helmut Schelsky
  • A Revolução Francesa introduziu no panorama histórico- cultural do Ocidente a tensão dinâmica de um “dualismo trágico” entre o individualismo radical dos “direitos humanos” e sua institucionalização na figura burguesa do “cidadão”. E esse contexto incide de modo marcante sobre a questão da Universidade e de seu lugar na organização da cultura.
Wilhelm von Humboldt foi um pensador que vivenciou, do modo mais típico, a angústia dessa tensão dinâmica como um verdadeiro dilema existencial. Seu contexto histórico-biográfico foi o da hegemonia do “despotismo esclarecido” em sua pátria, a Prússia, afetada fortemente pelo “terremoto político” da Revolução Francesa.
  • Aos 24 anos de idade, em 1792, Wilhelm demitiu-se do cargo de funcionário público do governo prussiano. Com isso, visou mais que apenas o afastamento de uma função que lhe parecia bloquear a criatividade. 
Colocava, diante de si, a possibilidade de realizar um verdadeiro “ajuste de contas” filosófico com o próprio Estado moderno, cuja emergência se desenhava nos horizontes do Iluminismo europeu.
  • E foi isso que ele buscou expressar numa significativa obra, cujo longo e desajeitado título aponta nitidamente a natureza do problema: Idéias para uma tentativa de se determinar os limites da efetividade do Estado.
Toda a empatia de Wilhelm von Humboldt para com a Revolução Francesa ficava obscurecida pelo temor de que o ideário iluminista incorporasse ao otimismo incondicional de sua crença no progresso uma crença na onipotência da instituição estatal. 
  • Em outras palavras: ele quer resgatar do humanismo idealista uma noção de liberdade que não se deixe sujeitar à perversão do terror totalitário. A liberdade que Humboldt prega para a pessoa não é a liberdade do arbítrio individualista feito um fim em si mesmo. 
Ela é a liberdade como condição de possibilidade para a formação da autonomia ética da pessoa. Com isso, fica recolocada a questão ética no centro da questão política. E Humboldt consegue expor o nervo do “dualismo trágico”: o risco de que o ideário iluminista se perverta na requisição de uma nova forma de sacrifício ritual da pessoa em novas formas de servidão.
  • Para Humboldt, as leis do Estado não são, em si mesmas, expressão da virtude. As prescrições do Estado moderno introduzem imposições ou hábitos de que as pessoas
“esperem sempre mais ensinamento alheio, direção alheia, ajuda alheia do que elas próprias concebam caminhos alter nativos”. Sob o seu Império, o Estado passa a se igualar “a uma multidão de ferramentas animadas e inanimadas, e não uma multidão de forças ativas e sensíveis”. 
  • Configura-se, assim, o sacrifício da autonomia ética da pessoa diante do aparato anônimo de controle. Emerge a existência massificada, a serviço da operação eficiente de um dispositivo de controle e diferenciação funcional. 
Nesse processo, a burocratização das estruturas modernas de poder é, para Humboldt, a contrapartida organizacional da mecanização, impondo seu ritmo às atividades econômicas e políticas.
  • Para Wilhelm von Humboldt, a eliminação da formação ética da pessoa na modernidade decorreria da perversão da liberdade pela homogeneização e uniformização das situações. 
Para ele, a liberdade de ação esvazia-se de conteúdo existencial, quando se deixa sujeitar a uma pré-moldagem institucional, que elimina a diversidade de situações com as quais as pessoas são confrontadas. Assim, a reflexão humboldtiana remete à questão da educação científico-tecnológica e ao lugar da Universidade na organização da cultura. 
E essa remessa, no contexto político-universitário alemão do início do século XIX, implica a consideração de quatro tendências predominantes. Eram elas:
  1. A Universidade tradicional, corporativista, conservadora, dissociada de pesquisas empírico-sistemáticas, centrada na transmissão dogmática do conhecimento por meio de um sistema de ensino estático, uma espécie de “missa do intelecto”, que se recusa a incorporar um compromisso com o pragmatismo utilitarista.
  2. O projeto pedagógico iluminista radical, que vê na atividade científica a fonte geradora de “conhecimentos úteis”, sistematizados em enciclopédias, que codificam o saber científico-empírico tecnologicamente instrumentalizável. A Universidade transmuta- se em escola científico-profissionalizante especializada de nível superior, expressão maior de um sistema estatal integrado de ensino.
  3. O projeto pedagógico iluminista reformista que compartilha da ênfase utilitarista do Iluminismo radical quanto ao dever-ser da prática científica, mas não vê nas universidades apenas peças de museu a serem superadas pelo novo sistema estatal integrado de ensino. O que se propõe é a busca de um “compromisso pragmático”, que adapte aos novos imperativos  uma instituição universitária reformada.
  4. O projeto universitário humboldtiano exemplificado na fundação da Universidade de Berlim, que deve ficar claro, não teve objetivo reformista. O que se visou foi a criação de algo novo, que se diferenciasse tanto da universidade tradicional, como do projeto utilitarista-iluminista.
Os planos para a criação da nova Universidade permaneceram nas gavetas da burocracia estatal prussiana até a derrota da Prússia para os exércitos napoleônicos (1806- 1807). 
  • Todos os territórios a oeste do Elba caíram sob domínio de Napoleão, e, com eles, diversas universidades como as de Duisburg, Paderborn, Erlangen, Erfurt, Münster, Göttingen e Halle, a principal universidade reformista-iluminista. Nesse novo quadro, em 16 de agosto de 1809,
Frederico Guilherme II assina o decreto de fundação da nova Universidade de Berlim. Wilhelm von Humboldt tem papel fundamental nesta fundação. Ele vai moldar a idéia-diretriz de um novo projeto universitário, em conformidade com o humanismo idealista de Schiller, Schelling e Fichte, a “formação ética da pessoa através de uma ciência que se compreende a si mesma como filosofia”. 
  • Esta concepção, enraizada no idealismo filosófico alemão, busca pensar o contexto global da vida e do mundo “como um produtivo pensar-se a si mesma da verdade em sua generalidade, que se liberta das autoridades e fins imediatos do saber, para se constituir numa auto-reflexão que reconstrói a totalidade do mundo como consciência de princípios”. 
Esse ideal vincula a atividade científica a uma correspondência ética com a vida, de modo que, nas palavras de Fichte, “o filósofo possa ser o eticamente virtuoso”.
  • Para a perspectiva humboldtiana a autonomia universitária é o espaço institucional de uma “solidão e liberdade”, que é também pressuposto para que se atinja aquele ponto “onde pensamento e realidade se encontram e voluntariamente se transformam”. 
São uma “solidão e liberdade” dirigidas polemicamente contra um claro opositor, que não é mais a “missa do intelecto” ministrada nas universidades tradicionais, mas sim a escola científico-profissionalizante especializada, de nível superior, em que a universidade iluminista escolarizada tendia a se constituir.
  • O projeto humboldtiano se afirma como espaço institucional de uma formação ética da pessoa por uma ciência que se compreende a si mesma como filosofia, e se afirma polemicamente contra a “cegueira auto-reflexiva” de uma Universidade que se escolariza segundo critérios de utilidade e especialização, fixados pela sociedade civil burguesa ou pela burocracia estatal. A palavra ética não é entendida na perspectiva humboldtiana como a mera expressão dogmática de um código de ação moralizante. 
Ela é sim a expressão da busca de uma correspondência normativa da vida, a permanente autoconstrução da pessoa, cuja autonomia espiritual requer a “solidão e liberdade” como metáforas da “destutelarização do intelecto”, condição de possibilidade para toda ação apta a ter no mundo, segundo a expressão de I. Kant, “o material do dever”. 
Agir eticamente fazendo do mundo o material do dever é para Humboldt o fim último da formação universitária estruturada para “metamorfosear tanto mundo quanto possível na própria pessoa [...] pela vinculação de nosso eu com o mundo para as mais gerais, provocantes e livres relações”.
Nesse ponto, interrompo o encadeamento desta exposição para uma breve polêmica comigo mesmo. Que sentido pode ter minha insistência em afirmar a “contemporaneidade” desse velho autor prussiano, cujo projeto universitário, na Alemanha de hoje, subsiste apenas de modo fragmentado e impotente? 
  • Lá, a reverência para com o projeto universitário humboldtiano tornou-se um ritual oco e unânime, não sendo pouco significativo que a extinta Alemanha comunista tenha mantido, durante toda sua existência, o nome “Wilhelm von Humboldt Universität” para designar a universidade de Berlim Oriental.
Passemos em revista alguns dos pressupostos básicos dessa imagem-diretriz ideal, por século e meio hegemônica em meio aos povos germânicos:
  1. A liberdade de ensino e aprendizagem de professores e estudantes. Humboldt vincula, em seu “plano organizacional”, essa liberdade a uma diferenciação essencial: entre as escolas superiores e a Universidade. Nas escolas, os docentes lá estão para os estudantes. Na Universidade, ambos estão conjuntamente confrontados com a ciência pura. A liberdade de ambos é um privilégio diante de todas exigências pragmáticas da aprendizagem e da formação da pessoa. Se hoje fôssemos aplicar, de modo estrito, os exigentes critérios humboldtianos, a imensa maioria das universidades não seria mais que centros escolares de formação profissional cientifizada. Um reconhecimento tão drástico não deve ofuscar, no entanto, o fato de que, mesmo nas universidades alemãs do século XIX, um enquadramento pleno nos critérios humboltianos talvez só fosse observado nas faculdades de filosofia.
  2. A unidade de ensino e pesquisa. No tempo de Humboldt, essa exigência era de fato uma realidade Basta considerarmos que obras decisivas de Fichte, Hegel e Schelling foram inicialmente produzidas como material de Vorlesungen (aulas expositivas sob a forma de leituras em auditório). Hoje isto se revela uma impossibilidade, quando nos diferentes campos de conhecimento os problemas da pesquisa passam a ter como pré-condição de compreensão um curso acadêmico completo. A fórmula humboldtiana se esvazia de sentido e se reduz à questão de se os pesquisadores, além de pesquisar, também não seriam os melhores professores, por terem melhores condições de “traduzir” pedagogicamente os resultados das mais novas investigações. Uma questão que de modo algum se pode responder com um simples sim.
  3. A unidade da ciência na filosofia. Este pressuposto humboldtiano já foi destruído faz tempo pelo progresso das ciências realizado na especialização. A pretensão de sintetizar o conjunto do saber científico e de reduzi-lo a um denominador comum filosófico não é mais considerada, hoje, um legítimo objetivo de pesquisa da ciência moderna. Salvaguardar a unidade da ciência, tarefa central no projeto humboldtiano, parece transformar-se em quixotesca batalha contra moinhos de vento, agora que a filosofia perdeu sua posição-chave no interior dos saberes universitários.
  4. A formação ética da pessoa pelo valor pedagógico da ciência. Todo o anteriormente exposto solapa, decisivamente, as bases do pensamento nuclear da concepção de Universidade humboldtiana: Humboldt estava convicto de que uma praxe científica em “solidão e liberdade” assegurava uma conformação normativa da vida, por ele designada “formação ética da pessoa na ciência”. A ciência que hoje ensinamos em nossas universidades não parece corresponder a isso. Atribuir-lhe uma “potência etizante” da vida seria mais que uma enganosa ilusão, seria uma verdadeira empáfia. Mas se hoje a formação científica não pode ser imediatamente identificável com uma “etização do caráter da pessoa”, tampouco devemos desistir de toda e qualquer tentativa de dar ao vínculo entre ciência e vida aquela efetividade que Humboldt queria associar à “idéia moral”. Hoje, confrontados com uma cientifização “infinita” da praxis, podemos, pelo menos, não abrir mão da tentativa de unir os efeitos da cientifização com as virtudes da cientificidade: modéstia, prudência, objetividade, crítica e autocrítica. Isso permanece parte vinculante da pedagogia da razão “razoável”. E justamente “razoável” por não pretender fazer da objetivização do racional a única razão de ser de toda realidade.
  5. Culturalismo. Idéia fundamental para a concepção humboldtiana de universidade é que a vida espiritual da ciência repousa em si mesma, e que nessa autonomia como cultura deve ser promovida pelo Estado. Contra o dirigismo protecionista do Iluminismo prussiano, Humboldt afirma a irredutível liberdade da pesquisa e da formação da pessoa na ciência. Mas essa concepção de uma ciência autônoma perante os poderes estatais, políticos e econômicos não parece conseguir se sustentar. A contemporânea “tecnociência” é um decisivo meio político de poder, um essencial meio econômico de produção. Ela de tal maneira se imbrica nas estruturas políticas e econômicas que se torna ilusório pretender isolá-la como um fato circunscrito a um supostamente autônomo domínio da cultura.
  6. Nacionalismo. Dimensão, hoje silenciada, da concepção universitária de Humboldt é a idéia nacional. A universidade alemã dos séculos 19 e 20 não é compreensível sem ser referida ao fundamento político do nacionalismo.  Ela partilhou essa idéia até seu amargo fim no nacional-socialismo. Mas o próprio “nacionalismo universitário” humboldtiano deve ser visto no contexto de um “projeto” mais do que de uma realidade dada. Humboldt não pretende com a fundação da Universidade de Berlim “o melhor para a Prússia”, e sim “o melhor para a Alemanha”.
Essa Alemanha era, então, “uma coisa politicamente ainda não existente”. E de certo modo vivemos hoje um certo paralelismo entre um ideal universitário, que se deslocava dos particularismos dos principados para um Estado nacional, e um novo ideal universitário, que se desloca do Estado nacional para o horizonte planetário. 
  • Por fim, é importante apontar que, neste contexto, Humboldt uniu a exigência de uma ampliação do horizonte social da ciência com a exigência de liberalidade e de superação da tutela política das universidades. 
Em particular, Humboldt criticou a proibição do estudo em universidades estrangeiras promulgada pelo rei da Prússia, expressando seu desejo de que fosse “formalmente superada, pois ela colide com a liberalidade que deve reinar em todas as coisas científicas”.
  • Como reconhecer a importância desse vulto histórico que, em 1967, completaria 200 anos de nascimento? Será que temos de reconhecer a férrea contradição de, por um lado, louvar sua contribuição para o desenvolvimento da ciência e da cultura na Alemanha moderna, e, por outro, dar “adeus a Humboldt” como condição do progresso da ciência e da cultura em nosso mundo de hoje?
Não é essa nossa posição:
  • Mas nos parece, antes de mais nada, necessário reconhecer que não nos interessam primordialmente as soluções humboldtianas, em sua contingência histórica, corporificadas numa forma institucional específica: um modelo universitário.
O que nos interessa é o possível paralelismo histórico das tarefas diante das quais Humboldt se colocou e arriscou uma resposta, e aquelas diante das quais nos colocamos. E, também, o reconhecimento de que talvez a imagem-diretriz ideal com que ele solucionou os problemas de seu tempo/ espaço siga sendo um pertinente ponto de apoio para tentativas de discernimento de problemas de nosso tempo/espaço.
  • Ou, expressos nos termos do idealismo alemão do século XIX: nossa questão é saber se somos capazes de realizar a idéia humboldtiana em novas formas institucionais. A situação com que Humboldt se defronta em 1809 é uma em que o Estado e a sociedade do Iluminismo se inclinavam inteiramente, em nome do progresso econômico, técnico e social, para uma formação profissionalizante, pragmática e cientifizada. 
O movimento em prol de um saber prático útil impulsiona a reforma da Universidade tradicional, transformando-a numa escola superior especial para formação profissional. Ao utilitarismo iluminista (hoje diríamos ao funcionalismo científico) contrapõe Humboldt um aprofundamento espiritual apoiado na referência ético-ideal à ciência que cria uma nova Universidade. 
  • A imagem-diretriz dessa Universidade funda-se numa decisão contra a ciência pragmática e a favor da ciência pura. O surpreendente foi que, precisamente por meio dessa decisão, a universidade gerou, no século XIX, um novo servidor público estatal academicamente formado, com um perfil de competência e uma ética profissional até então desconhecidos.
Hoje muito mudou. Mas continuamos defrontados com dois desafios: (1) a necessidade de formação profissional para uma camada cada vez mais ampla de empregos científico-técnicos; e (2) o aprofundamento da pesquisa voltada para aplicações imediatas segundo critérios industriais de produtividade nos campos da economia, da técnica e das atividades militares. 
  • Diante desses desafios, a teoria contemporânea da sociologia do conhecimento, propondo o enquadramento da produção científica nos cânones da racionalização do trabalho, ainda reconhece pelo menos uma questão de sabor humboldtiano como estrategicamente nevrálgica: a “criatividade” dos pesquisadores, de certo modo a “última relíquia” de um grande projeto e o padrão organizacional com ela congruente.
No projeto universitário humboldtiano, professores e estudantes são pessoas em permanente aprimoramento de virtudes, não em simples acumulação quantitativa de conhecimentos. O decisivo não é o quanto alguém sabe/domina, mas sim que postura assume na permanente busca das verdades. 
  • Não é em torno da “posse da verdade” que a universidade deve se organizar como uma mera instituição especializada de ensino, mas em torno da busca de verdades, como espaço institucional de aprendizagem. A escolarização da Universidade pretende fazer da liberdade de ensino, e não da liberdade de aprendizagem, o cerne da questão da autonomia universitária. 
Mas somente a liberdade de aprendizagem é compatível com a perspectiva humboldtiana de uma “ciência com consciência”, para a qual o estudo não é a mera transmissão de saberes estruturados, mas sim um compartilhar de uma forma existencial, um ser onde saberes se inserem. E o caminho para se compartilhar esse ser é o diálogo socrático.
  • Humboldt via “a solidão e a liberdade” como as condições de realização de sua universidade. Isto pode ser traduzido como os meios de realização do que Max Weber chamou de “a ciência como vocação”, ou, mais contemporaneamente, nas palavras de um mestre que tive a alegria de conhecer, Helmut Schelsky: “a exigência de concentração, dedicação integral, autodeterminação e responsabilidade na fixação de objetivos e aplicações da pesquisa universitária por parte de docentes e pesquisadores”.

Ciência, Ética e Sustentabilidade

  • Mas será possível e legítimo pretendermos hoje a “solidão e liberdade” humboldtianas? O entrelaçamento da praxis científica com tecnologia, economia, sociedade, Estado, militar parece tornar tal pretensão uma impossibilidade. No entanto eu gostaria de afirmar que essa aparente impossibilidade não é um fato novo. Ela já existia em 1908.
Diante desse “fato velho”, o “fato novo” foi o projeto universitário de Humboldt. Assim, fazendo tardio eco aos muros de 1968, podemos dizer: ser razoável (não apenas racional) é tentar o impossível como horizonte da vocação, e ser apenas racional é resignar-se ao cálculo utilitarista das conseqüências de cursos alternativos de nossas ações. Humboldt introduz uma nova relação entre a Universidade (e com isso a ciência) e o Estado. 
  • A solução humboldtiana assegurou a autonomia da ciência dentro do quadro hegemônico do sistema político do século XIX na Prússia. Hoje sua solução, fundada na autonomia da “cultura” com respeito ao “Estado”, revela-se insustentável. A autonomia da Universidade contemporânea está imersa no campo de tensões de forças políticas, econômicas e militares. Não está salvaguardada numa suposta autonomia da cultura. 
Assegurar a autonomia universitária pressupõe, hoje, a autocompreensão da ciência como força política, interlocutora ativa das instituições da sociedade civil, do Estado e da economia. Assim, num eco muito mais tardio ainda aos esforços socráticos por salvar a “razoabilidade da razão” do naufrágio do relativismo sofista, podemos dizer:
a ciência verdadeiramente livre é o conhecimento do Bem numa contínua busca amorosa, que se traduz em compromisso com a vida.
Humboldt via a diferenciação da Universidade com respeito às instituições “escolares” de ensino como um princípio fundamental. 
  • Parece que estamos agora diante da mesma tarefa. Mas a linha demarcatória deslocou-se para o interior da própria Universidade. O deserto da escolarização cresce, tomando quase que inteiramente os espaços dos cursos de graduação. A “solidão e liberdade” humboldtianas parecem circunscrever-se a alguns espaços minguantes da pós-graduação em sentido estrito, dos cursos de mestrado (cada vez menos) e doutorado (poucos). 
Esses “oásis” no deserto universitário são os campos férteis que nos restam para o florescimento daquela que talvez seja a mais esquecida das exigências da idéia universitária de Humboldt: a união da ciência com a Geselligkeit, uma velha palavra alemã em desuso que podemos, talvez, traduzir por “convivencialidade”, uma atividade conjunta não-condicionada pela eficácia e sim fundada em livres-associações, afinidades eletivas e fruição do prazer vocacional, elementos irredutíveis aos critérios utilitaristas da eficiência apenas instrumental.
  • A segunda metade do século XX assistiu a uma sucessão de transformações na estruturação das universidades como centros produtores e difusores de conhecimento. Uma estrutura gerencial matematicamente controlável foi superposta, em nível planetário, às universidades “tradicionais”.
E essa estrutura se apóia sobre três elementos de base, transpostos de seu contexto originário norte-americano: o departamento, o currículo e o campus. 
  • Sobre esse tripé se construiu a “grande transformação transnacional” das universidades, que doravante devem se tornar “fábricas que reproduzem o exato tipo de know-how necessitado pela civilização tecnológica”. O resultado é uma sistemática desqualificação dos conhecimentos das culturas regionais. Como aponta H. A. Steger, essa desqualificação é o inverso da qualificação profissional que prepara o indivíduo para desempenhar tarefas ‘superiores’: ela o prepara para tarefas crescentemente subordinadas e subalternas.
Os departamentos são as unidades operacionais das “universidades/ fábricas”. Os professores são as ferramentas agentes de uma “linha de montagem” (o currículo), mas ao mesmo tempo representam os produtos finais de tal linha.
  • Na operacionalização departamental dos “currículos/linhas de montagem os estudantes são a matéria-prima a ser transformada, cujo estado futuro é espelhado diante deles nas figuras dos professores, como “ferramentas preparadas para produzir cérebros para profissões específicas”. 
Resulta da “grande transformação transnacional das universidades” a “desqualificação provincializante do intelecto”, adestrado para ser “algo utilizável exclusivamente para aquele fim para o qual a linha de montagem está ajustada”.
  • O processo revela uma de suas facetas perversas, se considerarmos o sucateamento de cérebros descartáveis pelo sempre mutável horizonte de “empregabilidade” das sociedades industriais. É uma opção economicamente racional (ou seja, mais lucrativa) empregar um novo cérebro, treinado segundo os últimos requisitos do progresso tecnológico, do que manter por tempo indeterminado empregado um cérebro obsoleto, ou arriscar-se a “reciclá-lo”. 
Soma-se a isso o fato de que os postos de trabalho para os cérebros prestadores de serviços industrial-produtivamente úteis são minguantes, se considerarmos a possibilidade de uma contínua transposição das funções rotinizadas para circuitos cibernéticos de controle informacional.
  • As idéias que vinculavam a formação profissional-universitária com a formação ética da pessoa, identificando na educação um verdadeiro processo de “transmutação alquímica” da personalidade, parecem relíquias do passado. Ou, numa imagem menos gentil, restos de um cadáver insepulto. Mas como não nos deixam esquecer alguns pensadores “resistentes”, “na Europa do século XVIII (e antes dele), as escolas em todos os níveis eram estimadas como ‘minas’ produzindo o ‘ouro da razão’”. 
E esse ‘ouro da razão’ era produzido pela superação da ingenuidade pré-científica, num processo gradual que devia necessariamente incluir em si a elevação ético-moral do aprendiz, a repressão de crenças irracionais patéticas e a preservação da coesão social. Se quisermos atualizar essa proposição, devemos reconhecer que a ingenuidade que necessitamos hoje urgentemente superar deixou de ser pré-científica. 
  • Ela se fundamenta na trivialização da tecnociência, popularizada pelas mensagens “explicativas” ou “prospectivas” da media e pelas aplicações cotidianas, como uma estrutura existencial de referência da vida moderna. Recuperar a possibilidade de uma elevação ético-moral do aprendiz requer sua destutelarização com respeito à “trivialização” do humano pela interface tecnológica, a repressão da crença “salvacionista” nos poderes da tecnociência, e a prudente e zelosa preservação da sustentabilidade da síntese social de uma civilização científica.
Atualizar, para o mundo contemporâneo, a transmutação alquímica do “ouro da razão” requer desenvolver na pessoa do aprendiz a aptidão para desvelar o jogo “trivializante” que se joga na “interface tecnológica”. Requer nomear seus agentes. Requer identificar quem são os “senhores da globalização contemporânea”. 
  • Quem perde e quem ganha. E não fazer de um estado de coisas uma inelutável força do destino e, no exercício dessa confrontação ética, “recordando a fórmula socrática, poderia ser dito que hoje, mais que nunca antes, a educação da pessoa necessita uma forma de ‘ironia tecnocientífica’, sem a qual a pessoa não seria capaz de sobreviver como um intelecto independente, mas seria ‘trivializado’, feito um cérebro descartável”.
É claro que as “reformas” em curso visando o aprimoramento do desempenho das universidades/fábricas visando uma integração competitiva no mundo da globalização contemporânea não promovem qualquer “ironia tecnocientífica”.
Isso implicaria reconhecer e reafirmar uma primordial independência do conhecimento, sua autonomia com respeito as imposições da “razão de mercado”, da “razão de Estado” ou qualquer eco ao “discurso da servidão voluntária” (E. de la Boétie).
H. Lefèbvre, em meio à Revolta de 1968, advertia aos portadores de uma certa miopia contestatória, de suposta raiz marxista, que a lógica formal não é uma mera forma superestrutural, perecível junto com a “morte” de relações estruturais da “base” econômica que a tenham engendrado. Em outras palavras, a lógica é indestrutível. E, como nos aponta H. A. Steger, a lógica “aparece em nossa civilização como o modo estável de conhecimento. 
  • E essa natureza global e unitária do conhecimento é vitalizada pela pesquisa e a aplicação prática”. Nesse contexto, a tarefa da produção do “ouro da razão” não pode ser confundida com irracionalismos diversos, que jogam fora a criança junto com a água suja do banho. 
A “ouro da razão” está ali, onde a comunidade de intelectuais universitários ousa uma “reconstrução do conhecimento” expropriando seus expropriadores, e “isso é necessário para libertar o conhecimento de sua servidão, mas sem destruí-lo, num processo similar à restauração de um precioso quadro, transferindo-o de uma moldura para outra”.
  • Atualizar o exemplo de Humboldt no Brasil hoje implica repensar a questão “ciência e universidade” desde o fundamento, e traduzir esse pensamento para uma solução própria, não para uma cópia anacrônica. É não se deixar “herodianizar”, vivendo como uma “elite intelectual” que tem apenas os pés na Palestina, mas a cabeça em Roma, e que tantas vezes traveste a “excelência acadêmica” na medíocre mimésis de uma produção seriada de papers para revistas científicas de circulação internacional. Uma “elite intelectual” desenraizada de seu povo, seu lugar, sua história.
Somente o esforço por nos tornarmos o que somos pode fazer da herança universitária humboldtiana uma tarefa. E de Humboldt nosso contemporâneo.

Referências:

DUPUY, J. P. & ROBERT, J. La Trahison de l’Opulance. Paris, PUF, 1976.
HUMBOLDT, W.v. Ideen zu einem Versuch die Grenzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen. Stuttgart, Reclam Verlag, 1978.
LEFÈBVRE, H. L’Irruption de Nanterre au Sommet. Paris, Anthropos, 1968.
SCHELSKY, H. Einsamkeit und Freiheit. Idee und Gestalt der deutschen Universität und ihrer Reformen. Reinbek bei Hamburg, Rowohlt Taschenbuch Verlag, 1963.
STEGER, H. A. (ed.) Alternatives in Education. Wilhelm Fink Verlag. Munique, 1984.

Ciência, Ética e Sustentabilidade