Acidentes químicos ampliados: Um Desafio para a Saúde Pública
- No ano de 1994 foram realizados no Brasil alguns eventos que trouxeram para a saúde pública mais um desafio a ser enfrentado, entre tantos outros. A Organização Internacional do Trabalho e o Ministério do Trabalho organizaram o Seminário Nacional de Prevenção de Acidentes Maiores, no mês de maio na Bahia, e o Seminário Latino-Americano Tripartite Sobre Acidentes Industriais Maiores, no mês de agosto em São Paulo.
O Programa Internacional de Segurança Química da Organização Mundial de Saúde realizou em São Paulo, no mês de junho, o Simpósio IPCS Sobre o Gerenciamento dos Aspectos Ambientais e de Saúde de Acidentes com Substâncias Químicas. O Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz promoveu em dezembro o seminário 10 Anos de Bophal - O Acidente Químico Maior em Questão.
- Essas programações colocam a problemática dos acidentes químicos ampliados, capazes de produzirem múltiplos danos num único evento, possuindo também o potencial de provocarem efeitos que se estendem para além dos locais e momentos de sua ocorrência.
Por um lado, está a dificuldade de se avaliar as conseqüências de acidentes, por vezes extremamente complexos. Por outro lado, encontra-se o desafio de formular estratégias de controle e prevenção de acidentes com características bastante diversificadas. A discussão desse tipo de acidente no âmbito da saúde pública - objetivo central do presente artigo - é, uma exigência da qual não cabem omissões.
Breve Histórico:
- A importância dos acidentes químicos está diretamente relacionada em evolução histórica da produção e consumo de substâncias químicas em nível internacional e nacional. A partir da II Guerra Mundial, o aumento da demanda por novos materiais e produtos químicos, acompanhado pela mudança da base de carvão para o petróleo, conduziu ao desenvolvimento e expansão do complexo químico industrial.
A natureza altamente competitiva desse setor industrial, aliada ao crescimento da economia em escala mundial e ao rápido avanço da tecnologia, possibilitaram o aumento das dimensões das plantas industriais e da complexidade dos processos produtivos.
- Nos anos 60, uma planta industrial para craquear nafta e produzir 50.000 toneladas/ano de etileno era considerada de grande porte. A partir dos anos 80, plantas para a produção de etileno e propileno ultrapassaram a escala de l milhão de toneladas.
O transporte e o armazenamento seguiram o mesmo ritmo. A capacidade dos petroleiros no pós-guerra cresceu de 40.000 toneladas para 500.000 toneladas e a de armazenamento de gás de 10.000 m3 para 120.000/150.000 m3. Nesse período verifica-se que a comercialização mundial de químicos orgânicos passou de 7 milhões de toneladas em 1950 para 63 milhões, em 1970, 250 milhões, em 1985, e 300 milhões, em 1990.
- O crescimento das atividades de produção, armazenamento e transporte de substâncias químicas em nível global provocou um aumento no número de seres humanos expostos aos seus riscos - trabalhadores e comunidades. Paralelamente, observa-se aumento na freqüência e gravidade dos acidentes químicos nessas atividades.
Os acidentes com 5 óbitos ou mais, os quais são considerados muito severos, passaram de 20 (média de 70 óbitos por acidente) entre 1945 e 1951, para 66 (média de 142 óbitos por acidente) entre 1980 e 1986.
Os Acidentes Químicos Ampliados:
- A própria nomenclatura desses tipos de acidentes ainda não se encontra consolidada e varia de país para país. São freqüentemente denominados de acidentes maiores, uma tradução literal da expressão major accidents em inglês ou accidents majeurs em francês.
Em Portugal, no entanto, são definidos como acidentes industriais graves e na Alemanha como Störfall, cuja tradução literal seria algo como acidente de perturbação. Em nossa concepção, o termo maior induz a pressupor, de forma técnica e eticamente equivocada, como de menor importância os outros tipos de acidentes.
- No presente artigo propõe-se denominar esses acidentes como acidentes ampliados, ou, mais especificamente, acidentes químicos ampliados, uma vez que se restringirá somente aos envolvendo substâncias e produtos químicos. Esta terminologia parece ser mais apropriada ao sentido dado no presente artigo, expressando a possibilidade de ampliação no espaço e no tempo das conseqüências dos mesmos sobre as populações e o meio ambiente expostos.
Segundo a Diretiva de Seveso, de 1982, do Conselho das Comunidades Europeias, esses tipos de acidentes provêm de "uma ocorrência, tal como uma emissão, incêndio ou explosão envolvendo uma ou mais substâncias químicas perigosas, resultando de um desenvolvimento incontrolável no curso da atividade industrial, conduzindo a sérios perigos para o homem e o meio ambiente, imediatos ou a longo prazo, internamente e externamente ao estabelecimento".
- Na base de dados internacional "Major Hazard Incident Data Service (MHIDAS)", são considerados incidentes/acidentes** ampliados não só os situados no processo de produção industrial, mas também os de transporte e armazenagem de químicos que resultem em potencial de perigo para a comunidade. No campo da saúde, esses acidentes têm sido definidos de forma similar, com ênfase na gravidade e extensão dos agravos à saúde que podem provocar, freqüentemente, em um grande numero de seres humanos.
Considera-se, portanto, acidentes químicos ampliados os eventos agudos, tais como explosões, incêndios e emissões, individualmente ou combinados, envolvendo uma ou mais substâncias perigosas com potencial de causar simultaneamente múltiplos danos ao meio ambiente e à saúde dos seres humanos expostos.
- O que caracteriza os acidentes químicos ampliados não é somente sua capacidade de causar grande número de óbitos, embora sejam frequentemente conhecidos exatamente por isto. É também o potencial da gravidade e extensão dos seus efeitos ultrapassarem os seus limites espaciais - de bairros, cidades e países - e temporais - como a teratogênese, carcinogênese, mutagênese e danos a órgãos alvos específicos.
Características dos Acidentes Químicos Ampliados:
- Em termos quantitativos, os acidentes químicos ampliados nas atividades de produção situam-se entre 40% e 50%8,4,29,64. Para o transporte, os percentuais variam entre 46%29 e 15%8,64 e no armazenamento estão situados entre 33%8 e 16%.
Em relação às vítimas fatais em acidentes ampliados ocorridos no mundo, entre 1945 e 1986, com mais de 5 óbitos, os situados no transporte (46% do total de acidentes) foram responsáveis por 45% das mortes, enquanto as instalações fixas (40% do total de acidentes) por cerca de 47%29.
- Um estudo realizado em 1990 pela "Agency for Toxic Substances and Disease Registry (ATSDR)", em cinco estados dos EUA., mostrou que 91% das vítimas em indústrias onde ocorreram esses acidentes eram os próprios trabalhadores.
No "Major Accidents Report System (MARS)", sistema de informação para as Comunidades Europeias sobre esses tipos de eventos, dos 121 acidentes registrados entre 1980 e 1991, 49,6% tiveram vítimas. Do total de 878 vítimas, 44,3% foram trabalhadores das próprias indústrias e 52,8% pessoas externas, sendo 2,8% não identificados.
- Embora os acidentes químicos ampliados sejam conhecidos principalmente pelos seus impactos nas populações circunvizinhas, a análise dos dados do MARS revela serem os trabalhadores as principais vítimas fatais, destes acidentes (94%), enquanto que, para as vítimas não-fatais predominou a população externa, com 56,2%.
As explosões são os eventos com maior freqüência de grande número de óbitos imediatos, porém as emissões acidentais e os incêndios, estes últimos envolvendo a combustão de substâncias químicas e formação de nuvens tóxicas, não são menos perigosos.
- Estes dois últimos tipos, os quais segundo os dados do MARS estiveram presentes em 98,4% dos 121 acidentes químicos ampliados registrados, ao contrário das explosões, não têm os seus riscos circunscritos ao espaço e tempo dos acidentes. Podem se ampliar tanto em termos espaciais, atingindo outras cidades ou países, como em termos temporais, atingindo as gerações futuras.
A súbita liberação de energia provocada pelas explosões pode tomar diversas formas. Os efeitos das explosões físicas tendem a ser locais, porém as explosões químicas podem ter amplas repercussões, uma vez que podem resultar em incêndios e emissões de substâncias tóxicas perigosas.
- Em ambas as formas, há ainda a possibilidade de lançamento de fragmentos. Além dos danos patrimoniais que ocorrem na maioria desses eventos, alguns têm resultado na morte imediata de grande número de pessoas (trabalhadores e comunidades próximas), provocada por queimaduras, traumatismos e sufocação pelos gases liberados após as explosões, bem como lesões para um número ainda maior.
No caso dos incêndios, além da radiação de calor e dos possíveis incêndios e explosões adicionais, existem ainda os riscos associados à própria combustão das substâncias químicas envolvidas, resultando na emissão de múltiplos gases e fumaças tóxicas e atingindo áreas distantes. A combustão de PVC, por exemplo, pode gerar 75 produtos diferentes e no incêndio do depósito de produtos químicos da Sandoz em 1986, localizado em Schweizerhalle/Suiça, estimou-se que no mínimo 15.000 produtos podem ter sido gerados pela combustão basicamente de agrotóxicos organofosforados e compostos de mercúrio orgânico.
- Esta característica dos incêndios químicos tem tornado difícil estabelecer inferências causais entre a possível exposição e os sintomas específicos registrados, tal como evidenciam os estudos sobre bombeiros e populações expostas a estes tipos de eventos.
As águas residuais contaminadas dos combates aos incêndios químicos são outra fonte de riscos, tanto para as equipes de emergências que entram em contato com estas durante o combate, como para as populações que obtêm sua água para consumo dos rios atingidos.
- No combate ao incêndio da Sandoz, estimou-se que entre 10 e 30 toneladas de contaminantes foram lançadas no rio Reno através das águas residuais, resultando na morte de grande número de peixes numa extensão de 250 km e colocando sob risco uma população estimada em 12 milhões de habitantes distribuídos por cidades e vilas ao longo desse rio na França, Alemanha e Holanda.
Esses eventos, apesar de não serem responsáveis por grande número de óbitos imediatos, podem causar muitos danos à saúde dos seres vivos expostos e ao meio ambiente, a curto e longo prazos.
- As incertezas quanto aos próprios efeitos sobre a saúde e o meio ambiente também podem provocar sentimentos de medo, insegurança e mesmo pânico e instabilidade social nas regiões afetadas, conduzindo em alguns casos ao estresse nas populações expostas. As características físico-químicas das emissões acidentais são determinantes de sua toxicidade, vias de exposição e extensão das áreas atingidas. A forma sólida tem menor capacidade de se estender além dos limites da zona afetada, sendo mais frequente em casos de armazenamento ou disposição inadequada de resíduos.
As emissões líquidas acidentais, que freqüentemente ocorrem diretamente por vazamento ou derramamento, têm sua extensão determinada, entre outros fatores, pela existência de cursos d'água e barreiras naturais ou artificiais. Na contaminação de corpos d'água para consumo, tal como incêndio da Sandoz, milhares de pessoas podem ser colocadas sob risco
- As emissões de gases e vapores tóxicos na atmosfera apresentam maiores possibilidades de dispersão, podendo atingir grandes extensões e um número maior de pessoas, constituindo a forma predominante de exposições ambientais e ocupacionais.
A gravidade e extensão dessas emissões dependem das propriedades físico-químicas, toxicológicas e ecotoxicológicas das substâncias envolvidas, bem como das condições atmosféricas, geológicas e geográficas.
- Essas emissões, assim como os incêndios, podem provocar efeitos tanto agudos quanto crônicos, como carcinogenicidade, teratogenicidade, mutagenicidade e danos a órgãos-alvos específicos. Um único evento deste tipo pode se constituir em verdadeira catástrofe, tal como ocorrido no maior acidente químico da história em Bophal, na índia, em 1984.
Seveso:
O Protótipo do Acidente Químico Ampliado
- Conforme observam Bertazzi e col, embora o acidente de Seveso possua características que lhe são específicas, pode representar um protótipo exemplar dos perigos à saúde e ao meio ambiente associados à produção industrial de substâncias químicas. O acidente ocorreu no dia 10 de julho de 1976 na indústria química Icmesa. Uma reação inesperada em um reator provocou o rompimento do disco de segurança, resultando na emissão atmosférica de uma nuvem tóxica contendo triclorofenol, triclorofenato de sódio, etileno glicol, hidróxido de sódio e substanciais quantidades de dioxina.
A nuvem contendo dioxina liberada no acidente se estendeu por uma grande área (1.786 hectares), atingindo 37.234 seres humanos, não tendo sido detectada imediatamente a gravidade do mesmo.Poucos dias após a emissão, foram observados sinais de uma séria contaminação ambiental, incluindo danos à vegetação, aos pássaros e aos animais domésticos.
- Especialmente entre as crianças ocasionou queimaduras, lesões causticas e inflamações nas partes não cobertas do corpo, surgindo logo após a cloracne em 193 pessoas, sendo 170 em menores de 15 anos. A demora no fornecimento de informações, por parte da indústria, contribuiu para que as ações de emergência fossem iniciadas somente quando se evidenciaram os danos ao meio ambiente e à saúde.Alguns dos ingredientes que compuseram esse acidente se encontram presentes em grande parte dos acidentes químicos ampliados.
O primeiro é a localização muito próxima a uma área habitada de uma indústria química que emprega substâncias extremamente tóxicas. O segundo é um evento acidental causado por um descontrole das condições operacionais normais durante o processo de síntese industrial, resultando na emissão dessas substâncias. O terceiro é a natureza apenas parcialmente conhecida dos efeitos previstos, incluindo, além dos efeitos agudos severos, prováveis efeitos crônicos, que se evidenciam até décadas após o acidente.
- Por exemplo, a dioxina, suspeita de causar câncer em seres humanos, é objeto de dúvidas e controvérsias até hoje, de modo que a população atingida ainda é alvo de vigilância epidemiológica e de estudos para melhor identificar os efeitos crônicos. O quarto ingrediente é a demora em se obter informações precisas sobre as substâncias químicas envolvidas, seus efeitos e as medidas de emergência a serem tomadas
Agravamento dos Acidentes Químicos:
Ampliados nos Países de Economia Periférica
- Até os anos 70 os acidentes químicos ampliados ocorreram predominantemente nos países que ocupavam, ou vinham ocupando, um papel central na economia mundial pós II Guerra Mundial e, assim, concentravam grande parte das industriais, como a Alemanha, a França, a Bélgica, a Inglaterra, os EUA e o Japão. A partir dos anos 70, com a aceleração do processo de industrialização em outros países que viriam a situar-se na periferia da economia mundial, principalmente na América Latina e Ásia, verifica-se um crescimento e agravamento dos acidentes químicos ampliados.
No ano de 1984, Vila Socó (Brasil) e San Juan de Ixhuatepec (México), na América Latina, e Bophal (índia), na Ásia, foram cenários dos mais graves acidentes químicos ampliados registrados após a II Guerra Mundial em termos de óbitos imediatos. Na noite de 24 de fevereiro ocorreu uma explosão em um oleoduto da Petrobrás, localizado em Vila Socó.
- Seguiu-se, então, um incêndio de 700 mil litros de gasolina, resultando no registro de 508 óbitos. Em San Juan de Ixhuatepec, na madrugada de 19 de novembro, um vazamento de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), em um dos tanques de estocagem da Petróleos Mexicanos (Pemex), ocasionou uma explosão, seguida de uma série de incêndios e explosões subsequentes, resultando no registro de 550 óbitos.
Desses acidentes, o de Bophal foi o mais grave já registrado, e tem se constituído no protótipo do acidente químico ampliado nos países de economia periférica. Em Bophal, no fim da noite de 2 dezembro de 1984, iniciou-se um vazamento em um tanque de armazenamento da indústria americana Union Carbide, contendo cerca de 41 toneladas de metil-isocianato. As conseqüências desse acidente sobre a população vizinha a aquela indústria ainda são objeto de dúvidas e controvérsias.
- Embora o número oficial de óbitos imediatos registrados nesse acidente tenha sido de 2.500, as estimativas extra-oficiais variam entre 1.800 e 20.000. O número total de expostos e afetados pela nuvem varia entre 100.000 e 200.000, e o número de lesionados com permanentes disfunções pulmonares é estimado em torno de 20.000. Em número não determinado foram identificados também efeitos oftalmológicos. além da suspeita de outros.
Os acidentes de Bophal, San Juan de Ixhuatepec e Vila Socó acrescentam novos componentes ao acidente de Seveso, sendo próprios dos países de economia periférica, com características que agravam os acidentes químicos ampliados nesses países.
- A vulnerabilidade social existente nesses países manifestou-se de maneira mais acentuada na Índia, no Brasil e no México, os quais ocupam os três primeiros lugares em termos de óbitos por acidentes químicos ampliados, ocorridos no mundo, entre 1945 e 1991, com 5 ou mais óbito.
Esses três países tiveram seu desenvolvimento entre os anos 60 e 80 caracterizado pelo endividamento externo, forte intervenção do Estado e grande exclusão social, sendo estas suas formas de inserção na economia mundial. Nesse período, houve no Brasil, assim como na Índia e no México, uma rápida e desordenada industrialização e um intenso e incontrolado processo de urbanização, acompanhado de um grande fluxo migratório do campo e das regiões pobres para os grandes centros urbanos.
- O modelo econômico adotado por esses países combina concentração de capital, exploração da mão-de-obra e abandono ou omissão do poder público, permitindo o assentamento dessas populações nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos, sem acesso aos bens e serviços básicos de saneamento e saúde, ampliando suas situações de riscos.
O acidente de Bophal, assim como os de San Juan de Ixhuatepec e Vila Socó, traduzem a divisão internacional do trabalho e dos riscos, caracterizada por dois processos inter-relacionados. O primeiro é o de exportação dos perigos através de transferência de tecnologias, indústrias, produtos e rejeitos perigosos dos países de economia central para os de economia periférica.
- O segundo é o duplo padrão, onde indústrias multinacionais adotam padrões inferiores de segurança industrial e proteção ao meio ambiente, à saúde dos trabalhadores e às comunidades expostas nos países de economia periférica.
Estes padrões inferiores de segurança industrial, proteção ao meio ambiente e à saúde são também muitas vezes encontrados nas indústrias nacionais em comparação com similares nos países de economia central. Esses processos, inerentes ao modelo de desenvolvimento econômico vigente, são sustentados pela ausência e fragilidade de restrições legais e controle social sobre os riscos químicos nos países de economia periférica, cuja dinâmica da divisão do trabalho e dos riscos é, de certo modo, também reproduzida em nível interno desses países.
- O resultado da inter-relação entre divisão do trabalho e modelos de desenvolvimento nacionais e internacionais implicou a transferência de riscos químicos para as áreas mais pobres e periféricas aos grandes centros urbanos, definindo assim as áreas salubres e seguras das áreas insalubres e inseguras.
Os acidentes de Bophal, San Juan de Ixhuatepec e Vila Socó ocorreram exatamente nas áreas onde havia a combinação de largo contingente populacional pobre e marginalizado de acesso a bens e serviços, com fontes de riscos de acidentes químicos ampliados, resultando numa grande vulnerabilidade social das mesmas e, conseqüentemente, na morte de centenas ou mesmo milhares de pessoas num único evento.
- As condições sociais e políticas que contribuíram em 1984 para tornar esses acidentes, os mais graves já registrados nos últimos anos, continuam presentes, cabendo às populações mais pobres dos países de economia periférica arcar com o ônus de suas vidas e saúde para sustentar um modelo econômico iníquo na sua natureza e dinâmica.
Acidentes químicos ampliados: Um Desafio para a Saúde Pública
Acidentes Químicos Ampliados:
O Caso do Rio de Janeiro
- O Brasil, em termos de óbitos imediatos, já foi cenário de alguns acidentes químicos ampliados, além do de Vila Socó em 1984. No ano de 1983, em Pojuca, na Bahia, o descarrilamento de um comboio ferroviário transportando combustíveis resultou em explosão e incêndio, provocando o óbito de 43 pessoas, além de grande número de lesionados e desabrigados.
O Estado do Rio de Janeiro, o qual já foi cenário de alguns acidentes químicos ampliados com grande número de óbitos imediatos, pode se constituir num exemplo do contexto brasileiro.
- Em 1951, um acidente com transporte de inflamáveis causou 54 óbitos. Uma explosão, em 1972, na Refinaria Duque de Caxias (Petrobrás), na Baixada Fluminense, resultou no óbito de 38 trabalhadores. No ano de 1984, um incêndio na plataforma de produção de petróleo de Enchova (Petrobrás), na Bacia de Campos, teve como conseqüência 40 óbitos.
Nesse mesmo ano, segundo o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Petroquímica do Município de Duque de Caxias, uma explosão na indústria Petroflex resultou em 17 óbitos entre trabalhadores de empreiteiras.
- Atualmente, o Estado do Rio de Janeiro possui em seu território cerca de 20% das grandes indústrias químicas em termos de faturamento econômico. Sua localização geográfica o faz situar entre os pólos industriais químicos de São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahia, fazendo com que diariamente haja uma grande circulação de transportes de cargas perigosas em sua rede viária. Estas características, aliadas ao significativo volume de extração e refino de petróleo, e ao fato de a cidade do Rio de Janeiro possuir um porto de grande porte, contribuem para que haja um grande fluxo de transporte de substâncias químicas no Estado.
Além do transporte - principalmente pelas vias rodoviária e marítima e dutos -, há uma considerável produção industrial e armazenamento.
- Esses fatores têm contribuído para que venha ocorrendo no Estado número significativo de incidentes/ acidentes químicos registrados pelo Serviço de Controle de Poluição Acidental da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente - SCPA-FEEMA - nas atividades de produção, transporte e armazenamento.
Nas atividades de produção e transporte, que correspondem a 95% do total de incidentes/acidentes no período, cerca de 80% têm resultado em emissões diretas ou perda de produtos, tendo alguns envolvido substâncias extremamente perigosas, tais como cloro, amônia, sulfeto de hidrogênio, chumbo tetraetila e fosgênio. Emissões acidentais a partir de explosões e incêndios são também registradas pelo SPCA-FEEMA, situando em torno de 10% cada um destes tipos de eventos.
- Quanto à distribuição geográfica dos incidentes/acidentes verifica-se que grande parte (52%) atingiu principalmente a Região Metropolitana, a de maior densidade demográfica, tendo alguns ocorridos em áreas pobres e de grande contingente populacional. A Região do Médio Paraíba foi a segunda mais atingida (29%), sendo o rio Paraíba do Sul e seus afluentes, de onde vem a água fornecida para cerca de 80% da população do Estado, alvo freqüente de emissões acidentais.
A ausência de algumas informações básicas que permitam uma avaliação preliminar dos impactos desses eventos, tais como estimativas de danos ambientais, número de expostos e evacuados, assim como o registro de vítimas, constitui-se num dos limites dos dados do SPCA-FEEMA. levantou 587 eventos com emissões químicas perigosas em três bases de dados dos EUA, em 1986, que resultaram em, no mínimo, 115 óbitos, 2.254 lesionados e 111 evacuações.
- Assim, embora os dados do SPCA-FEEMA constituam a principal referência para a investigação sobre acidentes químicos ampliados no Rio de Janeiro, eles se mostram bastante limitados com relação às informações básicas para uma avaliação preliminar dos impactos à saúde que podem estar sendo causados pelos mesmos, tanto para vítimas fatais, como para lesionados e expostos. Considerando que os trabalhadores e as comunidades dos países de economias periféricas tendem a apresentar uma maior suscetibilidade às emissões de substâncias químicas, por conta de fatores tais como má nutrição.
Mesmo eventos com substâncias químicas onde as vítimas imediatas foram evidentes, tais como o incêndio na plataforma de Enchova e a explosão na Petroflex, anteriormente comentados, não foram registrados pelo SPCA-FEEMA, não constando também nas estatísticas mundiais utilizadas para o presente artigo.
- A existência de estudos realizados em bases de dados sobre esses tipos de acidentes nos EUA, onde eram registrados expostos e vítimas, mostra ser o não-registro de vítimas nos acidentes ocorridos no Rio de Janeiro uma conseqüência da ausência de uma política, particularmente no campo da saúde pública, para esses tipos de eventos.
Num estudo sobre acidentes químicos ampliados nas atividades de transporte, entre janeiro de 1982 e setembro de 1983, na Califórnia, EUA, Shaw e col encontraram uma média de aproximadamente 3 pessoas por acidente para 62 eventos onde havia informações sobre pessoas expostas. Binder ausência de saneamento básico e prevalência de doenças infecto-contagiosas, o quadro é bastante preocupante. Os resultados e limites apresentados sobre os dados do SPCA-FEEMA, no Estado do Rio de Janeiro, revelam duas questões importantes.
- A primeira refere-se aos riscos que os trabalhadores envolvidos nas atividades de produção, transporte e armazenamento de substâncias químicas, bem como as comunidades expostas a esses tipos de eventos, vem sendo submetidos sem, contudo, haver uma legislação e infra-estrutura específicas nos serviços de saúde e órgãos de meio ambiente para o controle e prevenção dos mesmos.
A segunda refere-se à necessidade da saúde pública atuar em conjunto com os órgãos ambientais na formulação de propostas para que algumas das deficiências, tais como a falta de registros adequados, monitoramento e avaliação das consequências, que por vezes chegam a acarretar em vítimas fatais, seja superada e possibilite a formulação de políticas de controle e prevenção de acidentes químicos ampliados adequadas a nossa realidade.
Outras Considerações:
- Os acidentes químicos ampliados indubitavelmente constituem problema relevante para a saúde pública, sendo um desafio ainda maior para países de economia periférica como o Brasil. Campos do conhecimento técnico-científico como a Epidemiologia, a Toxicologia, a Engenharia e as
Ciências Sociais, através das áreas de saúde do trabalhador, saúde ambiental, planejamento em saúde, entre outras, podem e devem trabalhar em conjunto para enfrentar a questão dos acidentes químicos ampliados.
- Dentre os desafios, pode-se citar a preparação dos serviços de saúde e seus profissionais para esses tipos de emergências a avaliação dos efeitos sobre a saúde e a formulação de políticas públicas para o controle e prevenção dos acidentes químicos ampliados, incluindo a elaboração de planos de contingência em áreas de risco, especialmente nas densamente povoadas.
No Brasil, já existem experiências locais neste sentido, tal como a implantação do Sistema de Prevenção de Riscos de Acidentes Maiores (SIPRAM), em Cubatão, devendo servir de referência para futuras experiências.
- Cada uma das atividades de produção, transporte e armazenamento envolvem estratégias e medidas particulares para o controle e prevenção, pois cada uma delas possuem características que impedem generalizações em termos do gerenciamento de riscos. Especificamente para a produção e o armazenamento, colocam-se como necessidades urgentes a definição, avaliação de riscos e re-licenciamento dos sítios perigosos já existentes; a informação sobre os riscos de acidentes e o planejamento de emergências envolvendo trabalhadores e comunidades locais.
Sem a implantação dessas medidas, principalmente através de uma legislação, tal como as existentes nos países da Europa e EUA, o potencial de grande tragédias ocasionadas por riscos de acidentes químicos ampliados continuará especialmente elevado no Brasil e demais países de economia periférica.
- Nesse sentido, importante perspectiva para o País encontra-se na proposta do Convênio da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a prevenção de acidentes industriais maiores (número 174) e as recomendações complementares (número 181), adotadas na Conferência Internacional do Trabalho em 199356. No seminário Latino-americano promovido pela OIT em 1994, em São Paulo, a delegação brasileira reiterou a necessidade do País aderir ao convênio e respectivas recomendações.
Os primeiros passos para o avanço no controle e prevenção de acidentes químicos ampliados no país já vem sendo dados. Porém, a trajetória ainda é longa e cheia de desafios onde a saúde pública pode e deve contribuir para enfrentá-los.
Acidentes químicos ampliados: Um Desafio para a Saúde Pública