segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A Etnoecologia - A História Ambiental

A Etnoecologia - Epistemologia - A História Ambiental

  • Não existiria a vida sem o ato do conhecimento. Este é um dos princípios epistemológicos da ontologia da realidade desenvolvida pelo neurobiólogo chileno Humberto Maturana. De forma aforística, ele nos propõe que ―viver é conhecer. (Maturana & Varela 2002) 
É sobre conhecimento e vida que trata esta pesquisa, por meio de uma abordagem etnoecológica e apropriação de ferramentas teórico-metodológicas da antropologia cultural e da história ambiental. Todo conhecimento sobre o mundo só pode ser descrito e compreendido a partir dos contextos biofísico, histórico e sócio-econômico nos quais foi gerado. Os saberes de comunidades tradicionais sobre os ecossistemas de que fazem parte são também construídos nessas mesmas bases. 
  • Existe uma miríade de campos disciplinares que se debruçam sobre os processos de construção do conhecimento pela humanidade, desde abordagens evolutivas, passando pela neurolinguística, a sociologia do conhecimento e também a etnoecologia, a qual foi a lente escolhida para o desenvolvimento deste trabalho. 
Embora pareça uma distinção pouco relevante, as diferenças epistemológicas e práticas entre saber e conhecimento possuem implicações significativas para a prática etnoecológica. Ainda que na literatura etno e cientifica internacional em língua inglesa essa distinção seja geralmente desconsiderada - knowledge sendo usado como equivalente a wisdom - muitos autores tem debatido a importância acadêmica e política dessa diferenciação semântica (Tisnés 2008, Villoro 2006). 
  • Uma busca realizada em agosto de 2012 no Web Of Science, um dos mais importantes sítios atuais de pesquisa científica, utilizando-se a expressão "traditional ecological knowledge" resultou em 1.015 ocorrências. Por outro lado, a mesma busca utilizando-se a expressão "traditional ecological wisdom" resultou em apenas 33 ocorrências. 
Dada a complexidade da genealogia destes dois termos, nos contentamos aqui em explicitar o conhecimento como parte de um sistema de saber. Tisnés (2008) indica em seu artigo a concepção de Ramirez (1992) do conhecimento enquanto um saber expressado em palavras, o qual poderia ser agrupado em quatro tipos:
  • Un saber expresado en palabras y consciente. Es conocimiento consciente. 
  • Un saber expresado en palabras, pero inconsciente. Es conocimiento inconsciente. 
  • Un saber no expresado en palabras, es decir, no simbolizado, pero consciente. Aquí se ubicarían en parte las sensaciones y los sentimientos. 
  • Un saber no expresado en palabras, es decir, no simbolizado y, además, no consciente. 
Por outro lado, a distinção entre saber e conhecimento pode também residir em sua correspondência com "a realidade". O conhecimento, muitas vezes utilizado como sinônimo de verdade ou de conhecimento científico pode ser compreendido como aquele saber atestado, sustentado por evidências, muitas vezes de caráter científico. 
  • Consequentemente, tendo em conta essas distinções, uma opção pelo uso do termo "conhecimentos ecológicos tradicionais" indicaria apenas a parte daqueles saberes ecológicos verbalizados e que encontrem suporte para sua validação no mundo real. Ora, é óbvio que esses saberes ecológicos das comunidades e povos tradicionais são constituídos na sua experiencia histórica, coletiva e cotidiana com os ecossistemas.Toledo & Barrera-Bassols (2008) utilizam o termo "sabidurias tradicionales" diferenciando-o dos"conocimientos tradicionales". 
Segundo esses autores:
"La puesta em práctica de ambos sistemas cognitivos es tambén contrastante. La aplicación del conocimiento como autoridad se realiza de una manera impersonal e indirecta con el fin de darle sentido al mundo, mientras que la sabiduría, como un testimonio, se enraíza en la experiênca personal y directa con el mundo. La diferencia entre un científico y un sabio reside en el hecho de que no es necesario ser un sabio para conducir un trabajo cientifico o, dicho de otra forma, no todo científico es un sabio. El conocimiento se adquiere vía capacitación y profesionalización. Por el contrario, el sabio no tiene la necesidad de formular teorías generales acerca de las cosas, sino que aprovecha su propria experiencia personal y conocimientos emíricos sobre las cosas. La sabiduría se adquiere a través de la experiência cotidiana, de la forma de vivir y de mirar las cosas." (p. 102)
Desta maneira, ao longo do texto, utilizaremos o termo "conhecimento" para nos referir a apenas uma parte dos saberes ecológicos tradicionais, um saber como "conhecimento consciente". Por outro lado, quando for utilizado o termo "saberes ecológicos tradicionais", estaremos assumindo o mesmo sentido utilizado pro Toledo & Barrera-Bassols (2008), incluindo tanto o conhecimento como as cosmologias e experiências - históricas, afetivas e coletivas - que integram esses saberes.
  •  Em diversas situações a referência a trabalhos de outros pesquisadores poderá trazer esses mesmos termos sendo utilizados com sentidos não exatamente equivalentes aos que aqui estabelecemos. Todavia, esperamos que o contexto da escrita em que aparecem permita a compreensão do sentido que estamos atribuindo aos mesmos.

A Etnoecologia - A História Ambiental

  • O campo da etnoecologia consolidou-se na segunda metade do século passado, desenvolvendo-se paralelamente a outras áreas das etnociências tais como a etnomatemática, a etnobotânica, a etnoastronomia e a etnopedologia (Albuquerque 2005, Clément 1998, Berkes 2008, 
Ellen 2006, Nabhan 2009). É um campo eminentemente interdisciplinar, inicialmente com uma aproximação entre a biologia e a antropologia, mas estendendo-se posteriormente a outras áreas do conhecimento tais como a psicologia, história, geografia e pedologia (Atran 1998, Barrera-Bassols & Zinck 2003, Marques 2002b, Reyes-Garcia & Sanz 2007, 
  • Toledo & Barrera-Bassols 2008). No diálogo fecundo com as outras etnociências, a etnoecologia, foi progressivamente avançando e consolidando-se com seus próprios objetivos e referenciais teóricos. Em um artigo seminal, Toledo (1992), assim define o objetivo da etnoecologia:
Em última análise, o objetivo da etnoecologia deve ser a avaliação ecológica das práticas e atividades que determinado grupo humano executa durante sua apropriação dos recursos naturais. (pag. 06). Já Virginia Nazarea (1999) chama a atenção para a necessidade da etnoecologia enfatizar o caráter situado dos saberes tradicionais. 
Segundo ela "ethnoecology needs to come to terms with the situated nature of knowledge, the constraining as well as liberating effect of this locatedness, and the importance of history, power, and stake in shaping environmental perception, management, and negotiation" (p.19).
Ao longo das décadas de 1980 e 1990, a etnoecologia se estabeleceu como campo de pesquisa no Brasil, tendo contribuições de diversas áreas do conhecimento, mas em especial da biologia (Campos 2001). 
  • Dentre as várias áreas das etnociências destacam-se no país, os estudos em etnobotânica, com consideráveis avanços metodológicos e teóricos e fortalecimento de grupos de pesquisa nos últimos anos (Albuquerque 2009, Albuquerque & Hanazaki 2009, Oliveira et al. 2009). 
No entanto, áreas como a etnozoologia, etnopedologia e etnoecologia também apresentaram importantes contribuições de pesquisas brasileiras (Alves et al. 2005, Bandeira & Góes-Neto 2003, Marques 2001, Santos-Fita & Costa-Neto 2007), sendo que hoje o Brasil ocupa uma importante posição no cenário mundial em pesquisa etnobiológica. Nesta pesquisa utilizou-se o arcabouço conceitual da etnoecologia abrangente, proposta por Marques (2001), a qual tem sido utilizada como base de muitas pesquisas etnoecológicas realizadas no Brasil nos últimos anos (ver: Alves et al. 2005, Moura & Marques 2008, Souto & Marques 2006). Segundo esse autor:
Etnoecologia é o estudo das interações entre a humanidade e o resto da ecosfera, através da busca da compreensão dos sentimentos, comportamentos, conhecimentos e crenças a respeito da natureza, característicos de uma espécie biológica (Homo sapiens) altamente polimórfica, fenotipicamente plástica e ontogeneticamente dinâmica, cujas novas propriedades emergentes geram-lhe múltiplas descontinuidades com o resto da própria natureza. Sua ênfase, pois, deve ser na diversidade biocultural e o seu objetivo principal, a integração entre o conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento científico.(Marques 2001, pag. 49).
Para Marques (2001), o estudo em etnoecologia pode ser descrito em termos da compreensão científica das bases cognitivas, conflitivas e conectivas das relações entre comunidades e ambiente. Em relação às bases conexivas, são consideradas as conexões ser humano/mineral, ser humano/vegetal, ser humano/animal, ser humano/ser humano e ser humano/sobrenatural. 
  • A etnoecologia abrangente conduz assim a uma clara necessidade de se estabelecer as relações entre processos cognitivos de significação e nomeação dos componentes animados e inanimados do ambiente, sem desconsiderar os diferentes interesses dos atores em jogo. A história do lugar ganha então papel crucial para a prática etnoecológica uma vez que é dela que resultam as conexões entre os componentes do ecossistema. 
A escolha do referencial teórico da etnoecologia abrangente desta maneira implica em uma consideração de todo o cenário socioeconômico (do local ao global), como forma de rastrear as conexões, os conflitos e novos significados em que os saberes ecológicos estão enredados.
  • Ao rever as idéias sobre a relação ser humano/natureza, a etnoecologia pretende reconstruir a narrativa da história, tanto humana quanto natural buscando superar a redução da história dos ecossistemas a processos evolutivos de ordem biológica e geomorfológica (Balée 1998, Lunt & Spooner 2005, Martins 2007). 
Desde quando nossos ancestrais começaram a se expandir pelas planícies africanas e daí a se espalhar por todo o planeta, a história natural dos ambientes confunde-se com a história humana. Se a evolução das espécies se desenrola neste cenário híbrido, é impossível a elaboração de políticas de conservação que desconsiderem esse contexto que caracteriza a história ambiental (Dean 1995, O‘Connor 1997, Pádua 2010, Ribeiro 2005, Worster 1991). 
  • Nesta pesquisa, o uso da história ambiental foi de fundamental importância para se entender os efeitos das mudanças socioeconômicas e culturais pelas quais passaram as comunidades em estudo e seus efeitos sobre seus saberes etnoecológicos. Drummond (1991) chama a atenção para o potencial da história ambiental como uma importante ferramenta para se compreender as interações das populações humanas e a natureza:
A história ambiental é, portanto, um campo que sintetiza muitas contribuições e cuja prática é inerentemente interdisciplinar. A sua originalidade está na sua disposição explícita de colocar a sociedade na natureza e no equilíbrio com que busca a interação, a influência mútua entre sociedade e natureza. (pag. 185).
  • A inserção de um estudo etnoecológico no contexto da história ambiental é de suma importância, visto que os saberes etnoecológicos de um determinado grupo humano são, em última análise, resultado de seu processo histórico de relação com o ambiente (ver Ribeiro 2005, Toledo & Barrera-Bassols 2008). 
Na região Amazônica, por exemplo, diversas pesquisas etnoecológicas de abordagem histórica foram desenvolvidas nas últimas décadas, contribuindo para a construção de novas abordagens nas pesquisas biológicas. Uma das principais descobertas realizadas destes trabalhos foi que a distribuição das populações de muitas espécies arbóreas, entre elas a castanheira-do-pará (Bertholletia excelsa) e o cupuaçu (Theobroma grandiflorum) é fortemente influenciada pelo manejo tradicional realizado por povos indígenas (Balée 2006). 
  • No entanto, mesmo se alcançando um conhecimento detalhado sobre a história de ocupação e transformação dos ambientes pela ação antrópica, os estudos dos atributos biológicos das espécies continuam a ser fundamentais para sua conservação. No caso das espécies vegetais, é essencial a compreensão das relações que estabelecem com outras espécies de plantas bem como suas associações com espécies dispersoras e polinizadoras (Given 1994). 
Quando se propõe adotar medidas de conservação para regiões fora de áreas protegidas, a resposta biológica das espécies em termos de dinâmicas populacionais é ainda mais influenciada pela matriz antrópica na qual os fragmentos estão inseridos (Cassano et al. 2009, Martinko et al. 2006). Elucidar os atributos biológicos da comunidade e das espécies fornece importantes elementos balizadores de políticas públicas que regulem os processos de uso e ocupação do solo. 
  • A complexidade do comportamento dos ecossistemas exige da ciência formal um diálogo com outras formas de saber, em especial os saberes das comunidades locais que possuem uma longa história ambiental de alteração e interação junto aos ecossistemas (Huntington 2000, Leff 2003, Leonel 1998, Posey 1986). 
Desta maneira, a pesquisa etnoecológica ganha destaque no delineamento e execução de ações para a conservação da biodiversidade, à medida que descreve e valoriza os saberes ecológicos das comunidades locais (Johnson 1992, Menzie 2006, Nabahn 2009, Usher 2000). 
  • A etnoecologia, além de permitir a compreensão dos usos, valores e significados dos ecossistemas para as populações humanas, pode trazer valiosas informações sobre a história ambiental das áreas estudadas bem como dados sobre a biologia e auto-ecologia das espécies que dificilmente seriam levantadas em estudos de curto e médio prazo que caracterizam a maioria das pesquisas científicas atuais (Becker & Ghimire 2003, 
Diegues & Viana 2004, Huntington 2000, Naidoo & Hill 2006, Nesheim et al. 2006, Usher 2000). A própria valoração econômica das espécies, como ferramenta para conservação, é facilitada pelas pesquisas etnoecológicas, fato bem ilustrado pela corrida para prospecção de novos fármacos junto a comunidades tradicionais (Heinrich & Gibbons 2001, Elizabetsky 1986, Porto-Gonçalves 2006, Shiva 2001).
  • A partir de 1992, com a elaboração da Convenção sobre Diversidade Biológica durante a Rio-92, os saberes ecológicos tradicionais ganham um papel central nas discussões ambientais no país (Araújo & Capobianco 1996, Lima & Bensusan 2003). 
Paralelamente a um movimento de mercantilização da biodiversidade e dos saberes associados como forma de proteção dos mesmos, diversos movimentos sociais se articularam para propor novas formas de proteção da sociobiodiversidade para além dos mecanismos de mercado (Brush & Stabinsky 1996, Shiva 2001). 
  • A etno-conservação surge como resposta das comunidades locais aos modelos de conservação com viés positivista, que tende a desconsiderar o caráter histórico e cultural da biodiversidade (Diegues 2000). Tomando como exemplo o caso do patenteamento da biodiversidade e dos saberes a ela associados, percebe-se em geral um conflito entre, o sistema jurídico moderno e as normas tradicionais de acesso e compartilhamento do conhecimento no interior e entre as comunidades. 
Os mecanismos legais existentes, baseados nos princípios de proteção de direitos intelectuais em geral são extremamente limitados para a proteção desses saberes, visto seu caráter altamente dinâmico, coletivo e inseridos em uma rede complexa de reprodução social das comunidades e povos que os detém. 
  • Por fim, é preciso salientar que os saberes e comunidades tradicionais estão inseridos em redes sócio-técnicas (Latour 1991) cada vez mais amplas. Essas redes, formadas por atores locais e globais, processos de transformação de matéria e energias, elementos animados e inanimados, culturais e biológicos, apresentam ritmos de expansão e transformação cada vez mais acelerados neste início de milênio. Isso torna imprescindível ter em conta esses novos contextos da pesquisa etnoecológica.

A Importância cultural e ecológica