sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Segurança Alimentar Nutricional

Segurança Alimentar Nutricional e os biocombustíveis

  • Falar de Segurança Alimentar Nutricional é interagir com vários campos do conhecimento, saberes e práticas; é fazer uma reflexão sobre o mundo e a sociedade que temos e queremos; é propor maneiras de garantir uma necessidade humana básica – a alimentação. 
Porém, não qualquer alimentação, mas uma alimentação para todos, com qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente, sem comprometer outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares saudáveis, que respeitam a diversidade cultural, e que sejam social, econômica, e ambientalmente sustentáveis (II CNSAN, 2004). 
  • Vários atores estão envolvidos nesse tema, com suas percepções e interesses, tornando a abordagem complexa e desafiante.
O conceito de SAN remete a uma amplitude de ações, que incluem as questões estruturais ligadas à capacidade produtiva do setor agrícola, a produção ambiental e economicamente sustentável, a preservação da base genética agrícola, as desigualdades sociais, o Direito Humano a uma Alimentação Adequada (DHAA), as repercussões da alimentação (ou de sua carência) na saúde, a qualidade nutricional, a garantia sanitária dos alimentos, os direitos do consumidor e a educação nutricional. Fruto de uma construção recente (II CNSAN, 2004), o conceito atual de SAN, no Brasil, que é transversal a tantos setores, ainda precisa de aproximações setorizadas e ampliadas a fim de que se possa construir o Sistema Nacional de Segurança Alimentar – SISAN (LOSAN, 2006).
  • A descentralização delega aos municípios o desenvolvimento de iniciativas próprias e a elaboração de um plano municipal para o acompanhamento da SAN no município; porém, a despeito de todas as dificuldades estruturais no nível local, é necessário que o tema SAN tenha sua importância reconhecida pelos atores envolvidos a fim de que o plano seja encampado por todos.
Este trabalho tem como objetivo contribuir para a análise da segurança alimentar e nutricional dentro do setor saúde, especificamente na atenção básica, e na consolidação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no município, buscando conhecer o que os profissionais de saúde identificam como SAN, o que pensam ser de responsabilidade da área da saúde e o que efetivamente estão conseguindo fazer para colaborar com a política de SAN.
  • Na revisão bibliográfica contextualizou-se SAN no cenário mundial e nacional; além disso, foi necessário fazer algumas considerações sobre políticas públicas, formação dos profissionais de saúde sobre o tema alimentação e nutrição; e a intersecção das políticas de SAN e de Alimentação e Nutrição, a fim de construir o contexto de influência a que estão expostos os entrevistados.
O Território Baixo Sul da Bahia é uma região onde tem uma diversidade de cultivos como cacau, cravo da índia, seringueira, guaraná e dendê, mas a renda com estes produtos é pequena para os agricultores e eles não servem como alimentos para as famílias. Preocupados com esta situação, algumas comunidades tem se organizado para melhorar a produção de alimentos e garantir a segurança alimentar das suas famílias. As principais ações envolvem a valorização dos quintais, produção de frutas e verduras, criação de pequenos animais, como galinhas e peixes, e uso das plantas medicinais.

O Tema SAN no Mundo:
  • O conceito de segurança alimentar tem sofrido transformações ao longo dos anos. Após a I Guerra Mundial, segurança alimentar significava o país ter autonomia na produção de alimentos; essa concepção foi fruto do cenário mundial, que em virtude de boicotes e embargos ocorridos, decorrente das guerras e disputas políticas da época, consideravam a autonomia na produção de alimentos uma premissa fundamental para a sobrevivência das populações dos países.Nos anos 70 do século passado, o enfoque para este conceito estava no armazenamento de alimentos, preocupação oriunda do crescimento populacional mundial e da escassez de alimentos.
Na década de 80 do século passado, o conceito foi questionado, pois se concluiu que a fome e a desnutrição eram decorrentes mais da dificuldade ao acesso do que de problemas na produção de alimentos, Mudou-se, assim, a ênfase para a redução da pobreza, já que a quantidade de alimentos produzidos mundialmente seria suficiente para todos e o problema estava na aquisição dos alimentos de forma desigual (Projeto Fome Zero, 2001).
  • No final da década de 80 e início dos anos 90, a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) apresenta ao mundo um conceito baseado nos seguintes aspectos: alimento seguro (sem contaminação química ou biológica); qualidade do alimento (nutricional, biológica, e tecnológica); balanceamento da dieta; informação nutricional; e opções alimentares respeitando os aspectos culturais. 
Ou seja, para a elaboração deste conceito, levaram-se em conta todos os aspectos que envolvem a alimentação e que influenciam tanto a forma como um povo se alimenta e aproveita seus alimentos como a sua qualidade de vida (FAO/OMS, 1996). O termo a partir de então passou a englobar além do acesso, as questões relativas à qualidade dos alimentos e à saúde dos consumidores, envolvendo, assim, a agricultura, a agroindústria, as iniciativas de preocupações ambientais, somadas às questões ligadas a saúde pública e à nutrição.
  • Assim, respeitando-se a autonomia dos países, cada nação tem o direito de definir sua política de segurança alimentar, respeitando sua própria cultura e tradição, e levando em conta todos os aspectos que envolvem a alimentação para o seu povo especificamente. Dessa maneira, cada país pode criar estratégias próprias para alcançar a segurança alimentar.
Nos últimos anos, as agências internacionais de cooperação em seus estudos sobre o tema Segurança Alimentar, têm abordado-o fazendo a análise de seus determinantes macroeconômicos, o cenário mundial para o futuro, os aspectos de influência da produção agrícola, do meio-ambiente e, também os indicadores populacionais pertinentes ao tema.

O Tema SAN no Brasil:
  • No Brasil, a preocupação com o acesso aos alimentos e o estado nutricional da população vem desde a década de 40 do século passado, com a publicação do trabalho pioneiro de Josué de Castro, A Geografia da Fome (Belik et al. 2001).Nas décadas seguintes, as iniciativas governamentais para o enfrentamento da fome, seguindo o conceito de segurança alimentar da época, tinham o enfoque voltado para produção de alimentos, sendo suas ações incipientes e basicamente centradas na distribuição dos alimentos aos grupos biologicamente e socialmente mais vulneráveis.
A criação do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), na década de 70, pode ser considerada um marco para a iniciativa pública no setor. Após a criação do INAN, em 1972, vários programas, relacionados com a alimentação e nutrição foram desenvolvidos, sempre na lógica da oferta de alimentos (cestas básicas, leite, etc.) a grupos específicos da população (gestantes, nutrizes, crianças menores de cinco anos e cidadãos de baixa renda). Infelizmente, este conjunto de programas desenvolvidos repetiu as distorções gerais encontradas na implementação de políticas sociais no Brasil, tais como seletividade e ineficiência, não atingindo, desta forma, seus objetivos plenos, nem mesmo na questão do acesso aos alimentos (Pessanha, 1998).
  • No meio acadêmico a utilização da expressão segurança alimentar como princípio orientador de políticas aparece em meados da década de 80, influenciada pelo conceito da FAO na época, que discutia segurança alimentar tendo em vista a produção agrícola e o acesso aos alimentos. No início da década de 90 é que pesquisadores do campo do meio-ambiente, das políticas públicas e do bem estar social juntaram-se à discussão desse tema (Pessanha, 1998). Apesar desse pensamento hegemônico, em 1986, quando ocorreu a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, apareceu ainda de forma incipiente, a idéia da interdependência entre segurança alimentar e o aspecto nutricional (Projeto Fome Zero, 2001).
No entanto, foi na I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em 1994, que o conceito foi ampliado e vinculado aos direitos sociais e à consolidação da cidadania, tornando-se quase sinônimo de política social (Brasil, 2003).Essa ampliação do conceito encontrou cenário político favorável, pois o combate à fome era prioridade nacional, e o plano de ações da época baseava-se nos princípios da intersetorialidade, participação social, eqüidade, parcerias Estado-sociedade e descentralização (encampada pelo movimento Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida – criado em 1993). A Presidência da República legitimava o CONSEA como órgão de aconselhamento (a criação do CONSEA deu-se em 1993), e o tema era pauta nacional.
  • Demonstrava-se, frente à mobilização social, a necessidade de se repensar a questão da alimentação para a população, considerando-a como um direito do ser humano e que não deveria ser utilizada politicamente ou como uma questão de benevolência (Vasconcelos, 2005). A aproximação entre setores governamentais e sociedade civil contribuiu para a maior coordenação e integração das ações desenvolvidas na época (Burlandy, 2004).
Nos anos seguintes, de 1995 a 2002, com a mudança de governo federal, o tema segurança alimentar deixou de ser declarado como um objetivo estratégico de governo: o CONSEA foi fechado e os setores organizados da sociedade civil engajados na luta contra a fome e pela segurança alimentar tiveram de buscar novos espaços para prosseguir com suas ações. 
  • Apesar do cenário adverso, com a realização da Cúpula Mundial da Alimentação, em Roma, em 1996, reuniu-se um grupo de trabalho constituído de representantes dos ministérios e da sociedade civil para a sistematização do conceito brasileiro de segurança alimentar. O conceito construído nessa ocasião não se limitava a defender a idéia do acesso aos alimentos, mas vinculava a essa condição a necessidade de que os alimentos fossem de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente. O conceito brasileiro na época representou um avanço para o país, encontrando eco na realização da Cúpula Mundial da Alimentação, em Roma. 
A isso se somaram alguns aspectos importantes que começavam a ser considerados concernentes à segurança alimentar: soberania alimentar, preservação da cultura alimentar de cada povo, sustentabilidade do sistema alimentar, e a concepção de que alimentação é um direito humano primordial.
  • Outro avanço alcançado foi a estratégia da CGPAN (órgão do MS, criado em 1998, que passou a desempenhar as competências do extinto INAN) em conseguir publicar a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), em 1999, contando com a participação de representantes de distintos segmentos da sociedade civil e da política (Vasconcelos, 2005).
A PNAN foi criada sob os princípios do Direito Humano à Alimentação e da Segurança Alimentar e Nutricional e tem sido até a atualidade a propositora das ações que são esperadas do setor saúde na área de SAN. A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) define que a atuação do setor saúde, no contexto da SAN, deve ser em dois momentos distintos (Brasil, 2003):
  • O primeiro quando há disponibilidade de alimentos, buscando, nesse caso, garantir seu aproveitamento biológico e a qualidade da alimentação (dieta) da população. Deve realizar assistência à saúde adequada, fazendo vigilância alimentar e nutricional, atuando na vigilância sanitária de alimentos e promovendo medidas de caráter educativo para uma alimentação saudável;
Na segunda situação, quando há obstáculos de acesso aos alimentos relativos à sua quantidade ou qualidade, cabendo nesse momento os cuidados às repercussões negativas causadas ao organismo, sendo as mais comuns o combate à desnutrição, às carências específicas (de ferro, vitamina A), à obesidade, ao diabetes mellitus, às dislipidemias, além das associações desses problemas de saúde com outras doenças crônicas.
  • A partir de 2003, o tema segurança alimentar e nutricional ganhou notoriedade expressiva, juntamente com o combate a fome, sendo assumidos novamente como prioridade nacional e princípio norteador de políticas públicas para diversos campos. Neste cenário propício, o CONSEA foi restabelecido e foram criados e consolidados os CONSEAs estaduais e municipais, fortalecendo, assim, os espaços de debate com a população.
Em 2004, dez anos após a primeira, ocorreu a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que discutiu e estabeleceu diretrizes para a construção de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, marcando os eixos de atuação para os diversos setores que englobam este tema. No rol de propostas prioritárias aprovadas por essa conferência, as que demarcaram a responsabilização do setor saúde na implantação da PNSAN estão descritas no tópico Ações de Saúde e Nutrição (II CNSAN, 2004).
  • A II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), fortaleceu a SAN como uma política nacional (não tendo como garantia apenas a vontade política), o que levou a sociedade, o meio acadêmico e os setores engajados com o tema a trabalharem para que as políticas voltadas a SAN sejam permanentes e definitivas.
Na saúde, a contribuição do setor na garantia da segurança alimentar e nutricional das famílias e comunidades constitui-se na execução das diretrizes da PNAN, considerando que a SAN foi um dos arcabouços teóricos para sua construção.
  • Seguindo os pressupostos da FAO, o conceito definido para segurança alimentar no Brasil, durante a II CNSA, diz que, “Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica, e ambientalmente sustentáveis” (II CNSA, 2004).
Previamente à II CNSAN, houve grande mobilização de vários setores da sociedade, o que contribuiu para a aprovação da criação de uma lei que firmasse a segurança alimentar e nutricional como ação prioritária no país (CONSEA, 2004). Sendo assim, foi aprovada e levada ao Congresso Nacional a proposta de uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que recebeu a sanção presidencial em 15/09/2006. Foi criado, assim, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e assegurado ao povo brasileiro, como direito humano fundamental, o acesso à alimentação, com garantia da qualidade e da continuidade desse acesso, integrado a um sistema intersetorial, garantindo a participação da sociedade junto com os setores estatais (Brasil, 2006 a).
  • A produção acadêmica no Brasil sobre SAN vem crescendo, sendo a SAN considerada, neste espaço, como uma política pública específica que tem interface com várias outras políticas. Essa abordagem tem possibilitado estudos relacionados com a economia, a produção de alimentos, a biotecnologia. Além disso, grupos de pesquisa têm se dedicado à validação e difusão de metodologias e indicadores de mensuração da segurança alimentar e nutricional (Cunha e Lemos, 1997; Segall-Corrêa, 2003); ao diagnóstico ou identificação de populações vulneráveis (Panigassi, 2005; Favaro et al.,2007; Leon et al., 2005; Leão, 2005; IBGE, 2006); à análise de SAN no Brasil (Takagi, 2006; Valente Junior et al., 2005); ao estudo de projetos e ações locais de SAN (Maluf, 1999; Leite, 2005; Frozi, 2003); e ao estudo sobre a disponibilidade dos alimentos para a população (Sampaio, 2005).
A garantia da segurança alimentar e nutricional, para todas as pessoas, é um desafio tanto para brasileiros quanto para muitas pessoas ao redor do mundo; e para superar o drama da fome (situação de insegurança alimentar severa), na esfera nacional e mesmo mundial, é necessário que haja ações integradas dos diversos setores relacionados com seu enfrentamento. Devido à amplitude conceitual do termo SAN, Panelli-Martins (2007) afirma haver quatro dimensões de atuação para a garantia de SAN: a disponibilidade de alimentos (relacionado com a produção e comercialização), o acesso aos alimentos (relacionado com a aquisição dos alimentos), o consumo de alimentos (relacionado com os fatores sociais, econômicos e culturais) e a utilização biológica de nutrientes (relacionado com todos os fatores que interferem na saúde do indivíduo). 
  • Isso demonstra a complexidade de seu enfrentamento, o que envolve ações de curto, médio e longo prazo. Reconhece-se que somente com estratégias de ações diversificadas, porém, articuladas, será possível garantir a segurança alimentar e nutricional das pessoas. Essas soluções permeiam desde questões estruturais ligadas à capacidade produtiva no setor agrícola, os problemas do meio-ambiente e o combate às desigualdades sociais, até as políticas de saúde pública, de vigilância à saúde, de direitos do consumidor, passando também pelas políticas de educação para a população e de formação para os profissionais ligados às diversas áreas.
Como no Brasil não há tradição de ações coordenadas que interliguem os diversos setores governamentais, a construção dessa realidade é o desafio que se coloca no momento. O entendimento do problema, seu diagnóstico e o estudo de seus determinantes têm tido avanços significativos; o arcabouço legal está legitimado; o presente e o futuro que se coloca é a efetivação das ações na garantia da SAN a todas as pessoas. 
Neste contexto, faz-se urgente a discussão sobre quais seriam as repercussões concretas que o debate e as proposições em torno da segurança alimentar e nutricional têm trazido para o campo das políticas públicas. Essas concepções estariam trazendo novos olhares para as ações de saúde na atenção básica? Justamente por ser o nível de atenção à saúde que está presente no cotidiano das pessoas e das comunidades (principalmente nas mais vulneráveis à insegurança alimentar e nutricional).

Merenda Escolar - Segurança Alimentar e Nutrição

Políticas Públicas:

As políticas de segurança alimentar e nutricional e de alimentação e nutrição são políticas públicas, e como tal, são documentos que delimitam um conjunto de ações e decisões que seus atores deverão seguir ou tomar. Isso, por si só, não garante seu efetivo exercício; como adverte Hofling (2001, p.35) 
“Política pública é o Estado em ação” e as “ações empreendidas pelo Estado não se implementam automaticamente, tem movimento, tem contradições e podem gerar resultados diferentes dos esperados”.
 Segundo Leite (2005), as políticas públicas passam por quatro fases de constituição: a de construção da agenda; a de formulação da política; a de implantação da política e a de avaliação da política.As políticas em questão, PNSAN e PNAN, estão ambas na fase de implantação, pois o contexto político muito influencia o estágio em que se encontra uma política. Apesar de seu diferencial temporal, essas políticas estão na mesma fase de constituição, devido ao fato de no Brasil somente nos últimos anos esses temas receberem um reposicionamento de prioridade na pauta governamental.Na implantação de políticas públicas, deve-se considerar que existem obstáculos sabidamente conhecidos, o que Silva e Melo (2000) classificaram em três tipos, associados a:
  • A capacidade institucional dos agentes implementadores;
  • O natureza política;
  • O resistência ou boicote de grupos afetados negativamente pela política.
As implantações das políticas de saúde, principalmente as de abrangência nacional, permitem um amplo espaço de autonomia para os agentes implementadores. Silva e Melo (2000) citam a saúde, entre outros, como o setor burocrático específico onde os implementadores tomam decisões cruciais, ao ponto de sua adesão ser variável decisiva no sucesso ou fracasso da política. E essa decisão não é inocente: é carregada da identidade profissional (médico, enfermeiro, etc.) e social (cidadão, político, servidor público), além dos interesses pessoais dos envolvidos.
  • Além dos aspectos individuais dos implementadores das políticas, no Brasil temos o processo de descentralização do poder que ocorre desde a Constituição de 1988, quando os Estados e Municípios passaram a ter autonomia local para executarem as políticas nacionais. Somam-se a essas dificuldades as vertentes políticas e de resistência nos três níveis de governo.
Sendo assim, a implantação não é uma fase linear, pois ela está sujeita a altos e baixos, avanços e retrocessos. De acordo com Silva e Melo (2000), as avaliações das políticas públicas deveriam acontecer simultaneamente à sua implantação, para que pudessem servir de retroalimentação e redirecionamento das ações frente aos novos problemas apresentados. 
  • Mas isso não ocorre com freqüência. Segundo Frey (2000), no Brasil não há uma tradição de análise de políticas públicas devido à dificuldade de adaptação aos referenciais teóricos que são produzidos em outros países da América Latina, ou seja, em realidades distintas da do Brasil. Além disso, há complicações na implantação homogênea no país, devido às dificuldades de descentralização, às diferenças de realidades regionais, às mudanças de cenários políticos constantes, à falta de planejamento da avaliação e à descontinuidade dos projetos e programas.
Os contextos político e econômico em que as políticas públicas se realizam influenciam sua prática. Sendo assim, o cenário brasileiro atual é bastante favorável para avaliação de grande alcance das questões de alimentação e nutrição, pois vivemos um contexto político democrático, em que as políticas sociais encontram respaldo: a fome e seu combate são prioridades do governo federal; existem espaços de interlocução com a sociedade organizada para as questões de alimentação e nutrição (CONSEAs, Fome Zero, ABRANDH, COMIDhA, FBSAN); 
  • Há incentivo à produção científica nessa área; é reconhecido o fortalecimento da área de alimentação e nutrição dentro do Ministério da Saúde com farta produção de material e interlocução com os profissionais de saúde e de outros setores; há um cenário econômico estável, possibilitando a análise das desigualdades sociais internas. Este cenário é fundamental para a sedimentação dos avanços obtidos e para o estabelecimento de novas estratégias para garantir a segurança alimentar e nutricional.
Este estudo não tem como objetivo realizar uma avaliação da PNSAN ou da PNAN, mas evidenciar, a partir de uma metodologia que possibilita a expressão de agentes implementadores dessas políticas no cotidiano, o entendimento desses profissionais sobre os avanços e desafios que se colocam diante dessas políticas no nível local.

Profissionais de Saúde e a Alimentação e Nutrição:
  • O papel da alimentação na manutenção e recuperação da saúde da população e do indivíduo está muito bem fundamentado cientificamente e, sendo assim, espera-se que os profissionais de saúde utilizem essa relação alimentação/saúde como fundamento teórico para sua assistência. Para que isso ocorra, é necessário que essa visão e formação estejam nas grades curriculares dos diversos cursos da área da saúde.
A formação dos profissionais de saúde tem sido preocupação de vários autores, principalmente em áreas ligadas às questões sociais. Sendo a abordagem da alimentação e nutrição profundamente imbricada com questões sócio-econômicas e culturais, a oferta de seu conteúdo nas universidades está sob essa influência. 
  • Segundo Amorim et al. (2001), devido ao mundo extremamente competitivo, a formação profissional, incluindo a dos profissionais de saúde, tem se fixado no tecnicismo, sem possibilitar a formação de profissionais-cidadãos capazes de transformar a realidade e a sociedade que os cerca. Isso seria resultante da permanência de práticas pedagógicas inspiradas no modelo mecanicista de Descartes, que privilegia a repartição para o entendimento do todo, e a separação entre corpo e alma, o que reforça as especialidades e separa as questões psico-emocionais e sócio-ambientais do processo saúde-doença.
A organização das unidades de ensino em departamentos também é apontada como outro fator que não propicia a integração das disciplinas profissionalizantes com as disciplinas de ciências humanas. Como conseqüência, não raro muitos professores desconhecem o objetivo do curso e até as atribuições do profissional que estão ajudando a formar. 
  • Muitas vezes, as disciplinas das ciências humanas são administradas da mesma forma aos diferentes cursos e a elas é atribuída pouca importância pelo próprio professor, dificultando que o aluno compreenda a importância daquele conteúdo para sua formação, como evidenciou o trabalho de Amorim et al. (2001) com pediatras e nutricionistas.
Canesqui (2005), ao estudar os seis cursos de nutrição mais antigos do Brasil (USP, UniRio, UERJ, UFRJ, UFBA, UFPE e UFF), mostrou que os conteúdos de sociologia, sempre de natureza introdutória, pouco se articulam a uma leitura social das questões alimentares e nutricionais; e os poucos cursos que propõem discutir sociologia aplicada, discutem temas gerais da sociedade, sem associá-los aos problemas de alimentação e nutrição, nem às intervenções pertinentes a profissão.
  • Em relação ao tema alimentação e nutrição, Boog (1999a) afirma que o conteúdo presente na formação profissional de médicos e enfermeiros é inexistente ou insuficiente, o que dificulta ou impossibilita uma abordagem multidimensional, como seria necessário, principalmente em ações de saúde pública. 
A autora, em outro estudo, complementa que o curso de enfermagem, que tradicionalmente tinha disciplinas na área de nutrição em sua grade curricular, com a Lei de Diretrizes Curriculares de 1994 passa a facultar a cada estabelecimento de ensino a inclusão dessas disciplinas. Em relação à medicina, a autora aponta que, já em 1985, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos publicou um relatório alertando para a precariedade do ensino de nutrição nas escolas médicas americanas. 
  • No Brasil, são exceções os cursos de medicina que ministram disciplinas na área de nutrição e dietética (Boog, 1999b). Ferreira (2004), ao analisar os currículos de formação profissional dos nutricionistas, identificou que eles também seguem o modelo biomédico dominante, voltado para uma atenção clínico–assistencial. Tal modelo é responsável pela dificuldade que outros profissionais de saúde têm tanto para produzir uma análise crítica sobre os determinantes da situação alimentar, como para propor estratégias de enfrentamento dos problemas relacionados com a alimentação. 
A própria construção da carreira de nutrição no Brasil foi composta inicialmente por dietólogos (fisiologistas que entendiam de alimentação e tratavam patologias a ela relacionadas) e por dietistas (que organizavam e dirigiam a produção de refeições, além de realizar a educação nutricional). Neste cenário, cabia aos médicos dietólogos não só prescrever dietas, mas pesquisar e teorizar, e aos dietistas garantir a execução técnica das dietas (Lima, 1998).Como afirma Canesqui (2005, p.293),
“o problema com que se defrontam os profissionais que se dedicam à alimentação humana é que reconhecemos a complexidade biossocial da alimentação humana, mas não a incorporamos nas nossas teorias e práticas”.
A própria PNAN (Brasil, 2003) apontou, em sua diretriz de Desenvolvimento e Capacitação em Recursos Humanos, a necessidade de haver um trabalho conjunto com o Ministério da Educação, tendo em vista a indispensável adequação dos cursos de formação na área da saúde, aos aspectos inerentes às diretrizes, enfatizando no aspecto social a alimentação enquanto direito.
  • Além da PNAN, todos os documentos legais e de orientação às ações de saúde que são produzidos pelo Ministério da Saúde ressaltam a importância de se garantir à população uma abordagem que leve em conta a alimentação e a nutrição, além de ações educativas de promoção à saúde e à vigilância nutricional que sejam executadas por todos os profissionais da atenção básica, dentro de seus núcleos de atuação (Brasil, 1990, 1999a, 1999b, 2002, 2005, 2006b, 2007 a).
Observa-se, assim, um descompasso entre a formação dos profissionais de saúde, o que se espera deles em seu campo de atuação e o que se garante legalmente à população como ação de saúde relacionada com o tema.
  • O descompasso fica mais evidente quando o foco é a atuação dos profissionais na saúde coletiva, porque ao acompanhar a saúde de um indivíduo, uma família, uma comunidade ou um município por um determinado tempo, fica evidente a influência dos aspectos alimentares na saúde, principalmente nas doenças crônicas não transmissíveis.
A assistência, sem considerar esse aspecto, é como “enxugar gelo”: por mais que se medique, os recursos disponíveis serão sempre insuficientes, pois se faz necessário atuar na prevenção de doenças (incluindo a educação nutricional), na promoção de saúde (considerando a alimentação e nutrição), no tratamento de patologias relacionadas com a alimentação e na reabilitação das pessoas com alterações graves de saúde.
  • Não há dúvidas de que, do ponto de vista clínico/biológico, os avanços e conhecimentos técnicos na área têm contribuído para colocar em evidência o fato de uma alimentação inadequada ser fator de risco para várias doenças. No entanto, os avanços no campo da promoção à saúde, no que tange a alimentação, não aparecem com a mesma atualização e força que as pesquisas clínicas, apesar do tema aparecer em discussão mundial desde a década de 70 do século passado. As ações nessa área sofrem distintas influências, trazendo abordagens díspares e avaliações incipientes (Akerman et al, 2002).
Para produzir frutos, a promoção à saúde deve empregar, principalmente em seu cotidiano, a educação em saúde com abordagem dos indivíduos e das comunidades, o que adiciona um componente pedagógico ao trabalho do profissional de saúde e a necessidade de possuir ferramentas teóricas e práticas nessa área. 
  • Porém, se a formação não possibilita reflexões abrangentes nem sobre a causalidade dos problemas de alimentação e nutrição, como esperar que os profissionais promovam a capacidade reflexiva nos usuários dos serviços de saúde?
Na área de educação nutricional, temos que considerar a forma como essa prática se insere em nossa sociedade e nos processos educacionais para então entendermos as práticas atuais de nutricionistas e dos demais profissionais de saúde.
  • No mundo a educação nutricional, enquanto especialidade de interesse acadêmico, existe desde a década de 40, quando no pós-guerra, com a escassez de alimentos, precisava-se adequar o custo/benefício da alimentação. Para tanto, eram utilizados alimentos nutritivos e baratos (Boog, 2004).
Nas décadas seguintes, a educação nutricional serviu a estratégias políticas e econômicas, e teve como objetivo o escoamento de produção e a expansão de mercado de países desenvolvidos para países menos desenvolvidos, o que a associou até a questionamentos éticos.
  • A partir das décadas de 60 e 70 do século passado, a educação nutricional passou a estar no lócus da medicina, influenciada pelas concepções behavioristas de educação com enfoque na mudança de comportamento. Tal perspectiva a levou nos anos de ditadura, a ser considerada como domesticadora e repressora. 
Segundo Pereira (2003), esta pedagogia do condicionamento ou modelagem da conduta concentra-se em uma abordagem eficiente em estímulos e recompensas, capaz de condicionar os indivíduos a uma resposta desejada. Trata-se de uma proposta pedagógica rígida e totalmente passível de ser programada em detalhes. Os conteúdos de ensino são as informações científicas, suas normas e leis, eliminando-se, desta forma, a subjetividade.
  • Em contraposição a esta abordagem hegemônica, na década de 70 alguns profissionais de saúde insatisfeitos trouxeram para o setor saúde as experiências de educação popular, a qual contempla e insere a participação popular nas ações de educação em saúde, rompendo com a tradição autoritária e normatizadora (Vasconcelos, 1998). Essa metodologia, cujo objetivo é despertar a autonomia crítica dos sujeitos, não se caracterizou como prática universal dentro da saúde, apesar de seu notório sucesso ao influenciar o destino da saúde no Brasil através dos Movimentos Populares de Saúde.
Somente com a constatação da transição nutricional brasileira é que a educação nutricional passa a ser revalorizada como estratégia de atuação em saúde, encontrando nos documentos de estratégia de promoção à saúde uma intersecção com as discussões atuais do processo saúde-doença. Ferreira (2004) assinalou que a garantia de condições para escolhas alimentares saudáveis fortalece a cidadania, o que é possível através de uma educação alimentar baseada em metodologias adequadas, tais como a problematizadora e o construtivismo.
  • A falta de formação em metodologias de educação tem sido outra dificuldade na abordagem da educação nutricional em nosso país. Segundo Santos (2005), mesmo para os profissionais nutricionistas, não tem se demonstrado uma preocupação com esse conteúdo; é como se o processo educacional fosse um processo de ocorrência natural. Tal entendimento leva a prevalecer, assim, a transmissão de informação e não a construção do conhecimento.
Espera-se que a educação nutricional traga novos sentidos e significados para o ato de comer, o que só é possível considerando o outro, seu contexto de vida, sua inserção na comunidade, suas afetividades e vontades.Citando Boog (2004, p.2) “não comemos nutrientes, mas alimentos e o significado deles na esfera afetiva, psicológica e nas relações sociais” (Boog,). Essa visão requer dos profissionais aproximações com várias fontes do conhecimento científico, além da interação com o saber presente no cotidiano das pessoas. É a desconstrução da prevalência do saber científico, sem recusar sua importância, possibilitando o empoderamento de todos.
  • Essa desconstrução e reconstrução das relações profissional-paciente, que perpassam todas as ações de saúde, não só aquelas relativas à alimentação, exigem esforços educacionais e pessoais para que uma nova postura frente à profissão e ao mundo sejam possíveis.Traverso-Yépez (2004), em seu estudo com alunos da área da saúde, encontrou, sobre a relação profissional-paciente, um discurso teórico calcado na relação do tipo mutualista (um encontro colaborativo entre iguais). Mas, nos depoimentos e justificativas de vários deles ainda apareceu uma relação hierarquizada, vertical e assistencialista baseada nas relações de poder devido à posse do conhecimento.
As dificuldades encontradas pelos profissionais de saúde na abordagem de alimentação e nutrição tiveram suas raízes na dicotomia entre promoção/prevenção e tratamento presente no seu período de formação. Ou seja, a história da alimentação e nutrição no Brasil, como a educação nutricional foi inserida nesse contexto e todas as representações sociais que permeiam a alimentação e nutrição são fatores que atuam na construção do perfil do profissional de saúde no Brasil.
  • Além desses desafios postos para as ações de alimentação e nutrição dentro do setor saúde, que influenciam a qualidade da assistência às famílias, o momento atual põe novos desafios para a formação dos profissionais de saúde. Transição nutricional, segurança alimentar e nutricional, fome, direito humano à alimentação adequada são temas que fazem e farão, nos próximos anos, parte do cotidiano dos profissionais (Boog, 2004) que, para estarem aptos a intervirem efetivamente, deverão mobilizar saberes de variadas fontes e ações integradas a setores externos à saúde.
A abordagem baseada na segurança alimentar e nutricional e no direito humano à alimentação adequada requer um trabalho multidisciplinar e intersetorial, como premissa básica de sua atuação. Deve, assim, considerar não só setores que trabalham com o indivíduo diretamente, mas também setores envolvidos desde a produção até a utilização do alimento.
  • Essa consigna exige do profissional uma atuação enquanto agente social transformador, ultrapassando os limites dos problemas nutricionais específicos e avançando na garantia da saúde de forma sustentável, resguardando a cultura alimentar de nosso povo, e produzindo autonomia nos indivíduos.
Sendo assim, a qualidade e efetividade das ações de SAN oferecidas à população vão além da reflexão sobre os conhecimentos adquiridos durante o processo de formação dos profissionais de saúde, e sobre a discussão da formação profissional necessária ao profissional do futuro, faz-se necessário considerar a complexidade e multicausalidade dos problemas alimentares e de saúde em geral.

Produção agroecológica garante a segurança alimentar de famílias produtoras agrícolas.