domingo, 8 de fevereiro de 2015

A sociedade e a Herança Colonial

Os primeiros engenhos de açúcar foram criados no Brasil para atender a demanda europeia. Eram os locais destinados à fabricação de açúcar, propriamente a moenda, a casa das caldeiras e a casa de purgar. 

  • Em EPL, Freire realiza uma análise das relações sociais baseada na sua configuração ao longo da história do Brasil, particularmente voltada a explicitar a sua contradição em relação ao potencial criador essencial do homem e a relevância dessa contradição para que a sociedade brasileira se desenvolvesse “dentro de condições negativas às experiências democráticas” (FREIRE, 1975: 66). O autor verifica essa contradição através das práticas de dominação, fomentadas pela exploração predatória durante a colonização, em que, segundo ele, tomando emprestada a expressão de Gilberto Freyre, “o ‘poder do senhor’ se alongava ‘das terras às gentes também’” (FREIRE, 1975: 67). A extensão do poder sobre o outro – que caracteriza a dominação – se personifica na figura de um sujeito dominante e de outro sujeito a quem, tendo sido negado o direito a assumir-se como tal, é dominado, passando à condição de objeto, nessa relação. 
Mas, como se depreende da referida passagem do livro, a dominação não está isenta de interesses. Defini-los, de acordo com Freire, envolve duas questões. Em primeiro lugar, existem motivações econômicas e políticas que incentivam a dominação e condicionam a dinâmica das relações sociais, ainda que estas variem conforme o período histórico e a sociedade em questão. No caso brasileiro, o autor salienta a importância e o papel que estas motivações tiveram na edificação das primeiras bases da sociedade brasileira durante a colonização, no desenvolvimento de sua economia pós-independência e na construção da democracia, considerando-as alicerces da formação do homem brasileiro. Contudo, além dessas motivações de ordem objetiva, existem também aspectos subjetivos referentes à dimensão existencial do homem que, sendo também pautados pela lógica da dominação, são profundamente desumanos.
  • A atenção do autor para com esses aspectos desumanos se faz presente na preocupação em abordar suas as conseqüências para a formação do homem, mais especificamente os impactos sobre a sua autoconfiança provocados por gerações de marginalização. Há que destacar, na filosofia e teoria educacional freirianas, o papel fundamental da autoconfiança para a assunção do homem à condição de sujeito, ou seja, de elaborador autônomo de suas idéias e ações. Tal opção não secundariza os aspectos objetivos acima mencionados, mas demarca a tônica das prioridades dentre as preocupações de sua teoria. Esta não se propõe a solucionar, de chofre, todos os problemas sociais assinalados, mas a contribuir, através da reformulação do processo educacional e de suas práticas, para o esclarecimento desses problemas através da crítica sistemática às respostas espontâneas e ingênuas que permeiam a sociedade e da construção coletiva de soluções alternativas junto a seus setores críticos, diferenciando-se de outras abordagens conceituais e pedagógicas que, embora se advoguem críticas, refutam as explicações do homem comum e não o incentivam a novas formulações.
Segundo o autor, os aspectos objetivos e os subjetivos das relações sociais têm por traço histórico a dependência e sujeição a um poder externo; no caso brasileiro a sujeição ao domínio português. Este, movido pela lógica mercantilista da Coroa portuguesa, representada por suas instituições “civilizadoras”, não criou no Brasil instituições que tivessem a intenção de fortalecer uma economia interna na colônia, nem promover um povoamento politicamente autônomo em relação à metrópole. Amparado por pensadores como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna e Fernando de Azevedo, Freire reconstrói o cenário das relações sociais do Brasil Colônia, discutindo a dependência econômica, política e cultural dessas relações da matriz portuguesa. Neste sentido, sua discussão busca mostrar o papel das práticas de dominação na criação e sustentação de um ambiente cultural de submissão, tanto entre a Coroa e a elite radicada no país que administrava a sociedade colonial, quanto entre essa mesma elite e a população de trabalhadores, na sua maioria escravos. De fato, a influência portuguesa na cultura brasileira, por maior que seja, é incapaz de escamotear as restrições sociais impostas ao desenvolvimento econômico, político e cultural da colônia e que restringem a liberdade de seus habitantes.
  • A origem dessas restrições remete ao modo como se desenvolveu o processo de ocupação da colônia pela Coroa portuguesa e seus súditos. Segundo Freire, “(...) nossa colonização foi, sobretudo, uma empreitada comercial. Os nossos colonizadores não tiveram (...) a intenção de criar, na terra descoberta, uma civilização. Interessava-lhes a exploração comercial da terra” (FREIRE, 1975: 67). Inicialmente, a Coroa empreendeu essa exploração, sem se preocupar com o povoamento da colônia, devido, em parte, ao fato de priorizar a “magnificência oriental” (FREIRE, 1975: 67) dos mercados asiáticos e, também, por possuir, à época, uma população “insignificantemente pequena, [que] não lhe permitia projetos de povoamento” (FREIRE, 1975: 67).
Destarte que, com o passar dos anos, o povoamento veio e, juntamente como ele, a instalação de uma economia colonial. Mas o modo como estes empreendimentos ocorreram leva Freire a trazer novamente sua discussão sobre a integração, mostrando como os empecilhos para a sua realização, apontados no quadro de transição da sociedade brasileira, também têm sua origem na herança colonial do país. Ele considera, em relação aos povoadores do território brasileiro, que “Faltou-lhes integração com a colônia” (FREIRE, EPL, 1975: 68), ausência que se desdobrou em um “poder exacerbado” ao qual “foi se associando sempre submissão” da qual “decorria, em conseqüência, ajustamento, acomodação e não integração” (FREIRE, 1975: 74). O autor, portanto, opõe sua concepção de integração a essa lógica e forma de poder, dissociando-a dos aspectos e posturas do homem resultantes da dominação. A defesa da integração empreendida por Freire se contrapõe aos vínculos e relações humanas inauguradas pelos exploradores portugueses e dominantes no cenário colonial brasileiro. De acordo com o autor:
“(...) mesmo quando, ao se criarem novas condições e surgirem as contingências que passariam a exigir dos conquistadores mais do que simples feitorias comerciais e sim o povoamento efetivo, de que resultaria uma maior integração com a terra, o que se observou foi a tendência para procurarem os trópicos e neles se fixarem aqueles que dispusessem de meios que os fizessem ‘empresários de um negócio rendoso, mas só a contragosto como trabalhador’ (Caio Prado)” (FREIRE, EPL, 1975: 68).
A afirmação acima assinala como a falta de integração na sociedade brasileira persistiu após iniciado o povoamento do Brasil, e se reproduziu em razão dos vínculos mencionados. A falta de integração entre os habitantes da colônia também é patente nas relações de trabalho.Por elas proverem a maior parte da extração e produção de riqueza da economia colonial, estas relações representam uma contradição entre a economia da sociedade brasileira à época e a necessidade de sua integração social para vencer as barreiras antidemocráticas.
  • Tal contradição constituiu um dos elementos que subsidiaram as relações antidemocráticas da sociedade colonial uma vez que a existência dessas relações está baseada na segregação (portanto, no oposto da integração) entre os membros dessa sociedade, na apropriação da liberdade de muitos por poucos e na subserviência daqueles a esses. Condições, portanto, que não impedem apenas a integração entre senhores das terras e escravos, mas também dos trabalhadores escravos entre si, embora por motivos claramente distintos.
A consolidação da economia agrária emergente no Brasil Colônia segue na linha da visão empresarial dos seus dirigentes portugueses. Segundo Freire “possivelmente, em parte por causa desta tendência, marchou a nossa colonização no sentido da grande propriedade” (FREIRE, EPL, 1975: 68). Como ele salienta ao longo desse parágrafo, a grande propriedade em questão constitui o engenho, “terras grandes, imensas terras, doadas às léguas a uma pessoa só, que se apossava delas e dos homens que vinham povoá-las e trabalhá-las.” (FREIRE, EPL, 1975: 68). O processo levou à formação de uma restrita elite local com laços bem atados ao poder metropolitano, tendo não apenas afeição a Portugal, mas ligações políticas com a Coroa que, afinal, lhe concedera as terras e o direito de explorá-las. Uma relação, portanto, de dependência para com ela. Conforme diz Freire:
“Nas grandes propriedades (...) não havia mesmo outra forma de vida, que não fosse a de se fazerem os ‘moradores’ desses domínios, ‘protegidos’ desses senhores. Tinham de se fazerem protegidos por eles, senhores todo-poderosos, das incursões predatórias dos nativos. Da violência arrogante dos trópicos. Das arremetidas até de outros senhores. Aí se encontram, realmente, as primeiras condições culturológicas em que nasceu e se desenvolveu no homem brasileiro o gosto, a um tempo de mandonismo e de dependência, de ‘protecionismo’, que sempre floresce entre nós em plena fase de transição. Naquelas condições referidas se encontram as raízes das nossas tão comuns soluções paternalistas. Lá, também, o ‘mutismo’ brasileiro” (FREIRE, EPL, 1975: 69).
A afirmação acima aponta para uma clara associação entre a estrutura econômica e social no referido período histórico da sociedade brasileira e a questão da dominação, não apenas pela apropriação do outro enquanto propriedade (no caso do trabalho escravo), mas pelo cerceamento à independência e à expressão da população trabalhadora que, naquele contexto, vive anexada à propriedade do senhor. O mutismo, como conseqüência da dominação, decorre da ausência do diálogo nesse meio social. Para Freire:
“As sociedades a que se nega o diálogo – comunicação – e em seu lugar, se lhes oferecem ‘comunicados’, resultantes da compulsão ou ‘doação’, se fazem preponderantemente ‘mudas’. O mutismo não é propriamente inexistência de resposta. É a resposta a que falta o teor marcadamente crítico” (FREIRE, EPL, 1975: 69).

Estima-se que existem pelo menos 70 mil casas de taipa no Ceará, instaladas na zona rural dos municípios, herança cultural

Freire considera a existência de relações dialógicas uma condição necessária para que a sociedade construa sua experiência de “autogoverno” (FREIRE, EPL, 1975: 70). As condições que impossibilitaram essa experiência e emergência de relações dialógicas durante o período colonial se devem, em parte, à falta de uma “vivência comunitária” (FREIRE, EPL, 1975: 70) capaz de formar os alicerces da participação política consciente. E, segundo ele, também se referindo ao contexto da colonização: “(...) em todo o nosso background cultural, inexistiam condições de experiência, de vivência da participação popular na coisa pública.
  • Não havia povo” (FREIRE, EPL, 1975: 71). Freire aborda a situação da consciência política brasileira durante o período colonial, principalmente, a partir das considerações de Oliveira Vianna, intelectual cujos estudos se preocuparam em demonstrar, comparativamente, as diferenças em relação a essa questão entre a realidade histórica européia e a brasileira.
No período colonial, os impedimentos à participação do povo nas decisões políticas, embora nascessem das relações impostas pela Coroa, deveram sua perpetuação e salvaguarda na sociedade brasileira aos representantes do poder metropolitano juramentados pelos órgãos do Senado e das Câmaras Municipais. Baluartes do poder verticalizado e antidemocrático da sociedade, a restrição à participação popular nestes fóruns expressa, naturalmente, a concepção de mundo e orientação por detrás do pérfido acesso a estas instituições e que testificam a participação política como privilégio exclusivo de uma elite economicamente dominante, não tendo ela sequer a obrigação de ser legitimada por um processo eleitoral abrangente a toda a sociedade. Nas palavras do autor:

  • "Com a exclusão do homem comum do processo eletivo – não votava nem era votado – proibida a ele qualquer ingerência, enquanto homem comum, nos destinos de sua comunidade, havia então de emergir uma classe de homens privilegiados que, estes sim, governassem a comunidade municipal. Esta era a classe dos chamados ‘homens bons’, com seus ‘nomes insertos nos livros de nobreza, existentes nas Câmaras’” (FREIRE, EPL, 1975: 75-76).
Com a transferência da sede da Coroa para o Rio de Janeiro, em 1808, o poder exacerbado das elites passa por uma reconfiguração social. Freire concorda, nesse ponto, com Gilberto Freyre, quando este diz que o patriarcado rural perde, com a vinda da família real para ao Brasil, a “majestade dos tempos coloniais” (FREYRE apud FREIRE, EPL, 1975: 77)11. No entanto, Paulo Freire ressalta:
“Esta transferência de poder ou de majestade do patriarcado rural, consolidado nas ‘casas-grandes’, para as cidades, então começando a tomar posição diferente – participante – na vida do País, porém, não significava ainda a participação do homem comum na sua comunidade. A grande força das cidades estava na burguesia que se fazia opulenta, enriquecendo no comércio e substituindo o todo-poderosismo do campo. (...) As alterações que se processaram, realmente grandes, não tinham nem podiam ter, ainda com a preservação do trabalho escravo, impedindo novos surtos de desenvolvimento, que o trabalho livre provocaria, força de promoção do ‘povo’, daquele estado de assistencialização, a que fora sempre submetido, para o de, mesmo incipiente, participação” (FREIRE, EPL, 1975: 77).
A reconfiguração social em questão, mesmo quando, ao reorganizar o poder das elites, afetava as relações políticas desta em relação ao povo – com a emergência do novo cenário político em que burguesia ocuparia a posição de dominação exercida pelos senhores de terras –, ainda não se encontram presentes condições para a sua participação das decisões políticas da sociedade. Neste sentido, Freire reitera a afirmação anterior de que “Só a partir da ‘rachadura’ da sociedade brasileira e de sua entrada na recente fase de transição, (...) é que se pode falar de um ímpeto popular. De uma voz do povo, com sua emersão” (FREIRE, EPL, 1975: 78).
Finalizando sua reconstituição histórica das relações sociais brasileiras do Brasil Colônia até os primeiros anos de 1960, Freire retoma uma questão comentada no tópico anterior deste trabalho, qual seja, a da mediação entre a transição social brasileira e as transformações em relações econômicas e de trabalho, que culminam com a sua industrialização. Diz o autor:
“Mais recuadamente estas alterações tiveram início nos fins do século passado, quando das restrições no tráfico de escravos e, depois, com a abolição da escravatura. (..,) Foram assim ou começaram a ser, aos poucos, empregados em atividades industriais incipientes. Desta forma, além do trabalho escravo supresso – o que daria início a nossa política de atração de imigrante para terras brasileiras, que viria ajudar o nosso desenvolvimento, demos início às primeiras tentativas de ‘crescimento para dentro’, em nossa economia” (FREIRE, EPL, 1975:81-82)
Freire concorda com Fernando de Azevedo, quando este diz que:
“(...) o início do surto industrial de 1885, o vigoroso impulso civilizador devido à imigração, a supressão do regime de escravatura que, ainda quando realizado de repente, como nos Estados Unidos, coincide com um grande aumento da produção e a nova economia do trabalho livre contribuem para as transformações de estrutura econômica e social, que não podem ficar sem seus efeitos sobre os hábitos e a mentalidade, sobretudo das populações urbanas” (AZEVEDO apud FREIRE, 1975: 82).
Mas o autor enfatiza: “(...) foi exatamente neste século, na década de 20 e 30, após a Primeira Grande Guerra, e mais enfaticamente depois da Segunda, que o nosso surto de industrialização (...) recebeu o seu grande impulso” (FREIRE, 1975: 82). Juntamente com os antecedentes e as conseqüências da industrialização apontadas por Fernando de Azevedo, Freire ressalta o surgimento de instituições sociais voltadas para o planejamento da sociedade e identificadas com a realidade nacional. O autor destaca, dentre essas instituições, o caráter exemplar do trabalho desenvolvido pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), sob a direção do economista Celso Furtado até a iminência do Golpe civil-militar de 1964.
  • Em razão dessas considerações, fica clara em EPL a referência do autor ao caráter particularmente positivo da participação política do povo brasileiro que resulta das alterações sociais inauguradas pelas mudanças econômicas e políticas do cenário brasileiro iniciadas na virada do século XIX para o século XX e que se intensificaram até os anos antecedentes à tomada do poder pelos militares. A retrospectiva histórica do Freire parece ter o intuito de mostrar um progresso da sociedade rumo a formas de consciência que realizem a essência histórica do homem, sem, contudo, apontar para um elemento ou conjunto de elementos específicos responsáveis por mover a sociedade nesta direção além do potencial criador humano e da ação concreta que, através dele, os homens empreendem quando oferecidas as necessárias condições históricas.

A senzala era uma espécie de habitação ou alojamento dos escravos brasileiros. 
Elas existiram durante toda a fase de escravidão (entre o século XVI e XIX) e eram construídas dentro da unidade de produção 
(engenho, mina de ouro e fazenda de café).