Ao longo da transição dos anos, teremos que lidar, de forma direta ou indireta, com temas que a princípio podem causar incômodo, pois estão de certa forma distantes de nossa vida cotidiana.
Neste tópico serão abordados, em EPL, os elementos constituintes da “sociedade brasileira em transição” (FREIRE, EPL, 1975: 39), juntamente com algumas referências a outras obras do autor ou de comentadores, dedicadas, em parte, à reflexão sobre esse conceito.
- O intuito da abordagem é perceber, particularmente em EPL, como Freire conceitua as relações sociais, a partir da concepção de trânsito ou transição da sociedade brasileira, tecendo correspondências distintas entre seus níveis de transitividade e os aspectos que denotam nela, por um lado, a herança de uma consciência submissa e acrítica e, por outro, a superação dessa consciência pela assunção do mundo, enquanto desafio e objeto de transformação.
Para tanto, é de suma importância destacar na obra o papel do conceito de integração. Em diversos trechos de EPL, Freire faz referência a esse conceito, sem oferecer uma definição específica para ele. Mas uma passagem, em particular, dá uma noção do que, aparentemente, constitui o seu cerne:
- “A integração [do homem] ao seu contexto, resultante de estar não apenas nele, mas com ele, e não a simples adaptação, acomodação ou ajustamento, comportamento próprio da esfera dos contatos, ou sintoma de sua desumanização, implica em que, tanto a visão de si mesmo, como a do mundo, não podem absolutizar-se, fazendo-o sentir-se um ser desgarrado e suspenso ou levando-o a julgar o seu mundo algo sobre o que apenas se acha. A sua integração o enraíza. Faz dele, na feliz expressão de Marcel, um ser ‘situado e datado’” (FREIRE, EPL, 1975: 42).
Parafraseando as palavras de Freire, pode-se dizer que a integração do homem ao seu contexto consiste na construção, por ele, de uma visão de mundo em conjunto com os demais homens – formando, assim, uma visão de mundo social – e, concomitantemente, na sua construção de uma visão de si, entendendo-a como, um só tempo, parte daquela visão e autônoma a ela.
- Nesse sentido, essas construções, por assim dizer (uma vez que se trata de duas ações concomitantes) precisam enraizar-se intimamente nos aspectos ou elementos que constituem a realidade objetiva do mundo. Convém dizer que a exposição e desmembração do referido conceito pelo autor não são acompanhadas, em seguida, pela descrição dos elementos com os quais o homem, neste processo, deve enraizar-se. Parece adequado, no entanto, supor que se trata, ao menos parcialmente, de seus elementos históricos e culturais, considerando-se o que Freire afirma pouco à frente da citação acima: “Não houvesse esta integração (...) a História e a Cultura, domínios exclusivamente seus, não teriam sentido.” (FREIRE, EPL, 1975: 42).
Primeiramente, a fim de entender a relação entre a integração do homem ao seu contexto e a possibilidade aberta pelo trânsito social de formulação de uma visão de mundo crítica das relações sociais, voltada para sua transformação, cabe observar a compreensão e conceituação da história assumida por Freire e a relevância desta conceituação na proposta de transformação da sociedade. Em uma nota de rodapé de EPL, consta a seguinte afirmação:
- “Na atualidade brasileira, as posições radicais, no sentido que lhe damos, vinham sendo assumidas, sobretudo, se bem que não exclusivamente, por grupos de cristãos para quem a ‘História’ no dizer de Mounier, tem sentido: a história do mundo, primeiramente, e em seguida a história do homem” (FREIRE, EPL, 1975: 51).
Esta afirmação pode ser comparada a duas afirmações anteriores da mesma obra. A primeira delas afirma que “É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não apenas de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo.” (FREIRE, EPL, 1975: 39). E a segunda diz o seguinte:
“Na história de sua cultura terá sido o do tempo – o da dimensionalidade do tempo – um dos seus primeiros discernimentos. O ‘excesso’ de tempo sob o qual vivia o homem das culturas iletradas prejudicava a própria temporalidade, a que chega com o discernimento a que nos referimos e com a consciência desta temporalidade, à de sua historicidade” (FREIRE, EPL, 1975: 41).
Comparando as três citações, pode-se dizer que a compreensão da história duplamente como “história do mundo” e “história do homem”, conforme exposta na citação de nota de rodapé na página 51 de EPL, implica que as relações do homem com o mundo sejam necessariamente históricas para Freire. E, sendo assim, o discernimento do tempo, uma vez que este também é histórico, perpassa o bojo dessas relações e constitui parte do homem. Através, portanto, da sua temporalidade, isto é, da consciência do tempo como parte de si, o homem chega à consciência de sua historicidade, sendo, pois, temporalidade e historicidade duas dimensões inerentes ao homem.
- O que torna possível que estas dimensões se revelem parte do seu ser, ou que sejam dele apartadas, é a consciência que o homem delas possui. A integração, dessa maneira, ocorre na medida em que as relações entre homem e mundo são mediadas, de sua parte, pelo cuidado na formação de sua consciência e na autodeterminação de critérios para suas apropriações.
Se a integração torna o homem, na expressão que Freire utiliza tomada por empréstimo de Gabriel Marcel , um ser “situado e datado”4 , ela pressupõe, para isso, o exercício pelo homem das habilidades de sua consciência, de modo a recolocar sua situação e condição no mundo.
- Vale dizer, ela pressupõe que a percepção de sua dimensão histórica não se restringe a uma aquisição mediante um olhar para trás, isto é, uma análise das transformações passadas do mundo e do papel determinante do homem nestas transformações.
Ao contrário, a integração requer do homem (em particular) e da sociedade (em geral) a compreensão da história como parte da transformação das relações homem mundo, sendo o homem o condutor dessas transformações e o mundo, seu contexto. Nesse sentido, ela coaduna, num plano conceitual, a consciência do homem com a conformação da realidade objetiva, porém, com o intuito de situar o conjunto de problemáticas do seu momento histórico para melhor orientar sua ação. Por isso, Freire afirma que a integração se aperfeiçoa na medida em que a consciência se torna crítica (FREIRE, EPL, 1975: 42). Em seguida, ele diz:
“E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas. E o fará melhor, toda vez que, integrando-se ao espírito delas, se aproprie de seus temas fundamentais, reconheça suas tarefas concretas” (FREIRE, EPL, 1975: 43).
Para Freire, “Uma época histórica representa, assim, uma série de aspirações, de anseios, de valores, em busca de plenificação” (FREIRE, EPL, 1975: 44).
O autor compartilha de uma concepção epocal da história. Para ele, a história corresponde a um conjunto de épocas sucessivas, marcadas por temas que representam aspirações, anseios e valores dos homens em diferentes momentos do desenvolvimento de suas sociedades, temas estes que, quando problematizados, apresentam desafios de cada momento para a sua integração nos âmbitos individual e social.
- A compreensão epocal da história não aponta para um elemento ou força em particular como fonte de seu desenvolvimento, a não ser para as relações homem mundo, uma vez que é a partir delas que o homem toma consciência de sua historicidade.
A consciência, no entanto, não cria a história. É o homem quem a cria à medida que sua ação torna possível o desenvolvimento histórico, isto é, o desdobramento de épocas das quais ele é partícipe. Em certo sentido, essa concepção compreende o desenvolvimento da história como condicionado mais à ação humana do que à sua consciência. É evidente que, sendo a consciência parte do homem – e, portanto, parte da sua ação – ela contribui significativamente para o desenvolvimento da história.
- No entanto, a redução da criação e do desenvolvimento da história à ação do homem (isto é, às suas aspirações, desejos, impulsos...) ou à consciência humana (a compreensão que tem de si, do mundo e dos demais homens) não parece ser algo aceito por Freire.
Ao contrário, uma vez que ele considera o homem como um ser de relações e a história como dimensão e característica de sua ação consciente no mundo, tais reduções parecem ir contra as posições do autor.Contudo, a consciência tem um papel muito importante na concepção epocal da história, pois somente através dela as temáticas ou temas – Freire usa indistintamente os dois termos – de uma época histórica podem ser apreendidos. Esta posição é confirmada pela seguinte afirmação do autor:
“(...) desde já, saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época.” (FREIRE, 1975: 44).
Da solidão à sociedade
Convém salientar, também, a relação apontada por Freire entre a formação no homem de uma atitude crítica e a caracterização da integração enquanto uma vocação natural do homem, pois se a integração possui este caráter para o autor, a necessidade de um constante exercício de sua consciência crítica também o possui, – ela também é uma necessidade natural do homem – pois esta necessidade é condição indispensável para a sua integração.
- Da mesma forma, sendo a apreensão dos temas e tarefas de sua época uma necessidade inerente à sua constituição histórica, pode-se dizer que, para Freire, o estímulo a esta apreensão também é natural do homem. Essa adjetivação, porém, não pode dispensar a seguinte compreensão: as dimensões naturais e culturais do homem não são consideradas antagônicas por Freire; ao contrário, se complementam, uma vez que as relações estabelecidas pelo homem com o mundo, em sendo elas históricas, culturais e sociais, decorrem da sua disposição para a integração e sua constituição relacional com o mundo. Neste sentido, os estados de ajustamento e acomodação, por formarem a antítese do ímpeto criador do homem, não correspondem à sua vocação de integração e contrariam sua natureza humana.
Ao que parece, essa compreensão de natureza humana resulta de o homem ter, para Freire, uma vocação para a humanização, a qual, porém, necessita, para desenvolver-se, da assunção de suas temáticas históricas e, por essa razão, também da adequada atitude por parte da sua consciência. Diz Freire:
“Sua humanização ou desumanização, sua afirmação como sujeito e minimização como objeto, dependem, em grande parte, de sua captação ou não desses temas. Quanto mais dinâmica uma época na gestação de seus temas próprios, tanto mais terá o homem de usar, como salienta Barbu, ‘cada vez mais funções intelectuais e cada vez menos funções puramente instintivas e emocionais’” (FREIRE, EPL, 1975: 44).
As “‘funções intelectuais’” assinaladas por Freire, aparentemente, representam as disposições humanas com as quais a atitude crítica pode ser construída. Desenvolver estas disposições significa, nesta acepção, apreender as temáticas do tempo presente de maneira criteriosa, opondo-se às respostas de cunho emocional que surgem durante a transição de épocas. Continuando a fazer referência a Barbu, ele diz que:
“As sociedades que vivem esta passagem, esta transição de uma para outra época, estão a exigir, pela rapidez e flexibilidade que as caracterizam, a formação e o desenvolvimento de um espírito também flexível. O uso, para repetir Barbu, de ‘funções cada vez mais intelectuais e cada vez menos instintivas e emocionais’, para a integração do homem. A fim de que possa perceber as fortes contradições que se aprofundam com o choque entre valores emergentes, em busca de afirmação e plenificação, e valores do ontem, em busca de preservação. É este choque (...) que caracteriza a fase de trânsito como um tempo anunciador” (FREIRE, EPL, 1975: 45- 46).
O conceito de trânsito em Freire é, na verdade, assim como no caso de outros conceitos, uma reconceituação do termo já utilizado por intelectuais brasileiros nos anos 50 e início dos anos 60 (antes do Golpe civil-militar de 1964), tendo grande importância para as análises filosóficas e sociológicas. Tal conceito teve ampla presença entre os trabalhos de pensadores vinculados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), particularmente na produção de Alberto Guerreiro Ramos (1958) e Álvaro Vieira Pinto (1960), que recorreram a ele no esforço de explicar o desenvolvimento histórico da nação brasileira e a conjuntura pelam qual esta estava passando.
- A afirmação supracitada apresenta, pela primeira vez no texto, a palavras “transição” e “trânsito” como que denotando o mesmo conceito. A julgar pelo modo como Freire realiza sua exposição conceitual, sem delimitar uma definição fechada para cada idéia, pode-se considerar a referida afirmação como o início da conceituação freiriana de trânsito ou transição social em EPL.
Essa conceituação decorre da concepção de história epocal, pois a transição em questão se dá entre épocas históricas. E, devido a tais épocas se delimitarem por um conjunto de valores, anseios e aspirações dos homens, a transição entre uma e outra significa, principalmente, a transição destes valores, anseios e aspirações.
- Por isso, Freire insiste em que a transição da história faz a partir da apreensão dessas temáticas como forma de possibilitar ao homem o entendimento crítico dos valores em transição. E a importância e o destaque do uso dado ao emprego das funções intelectuais se devem ao fato de elas constituírem parte desse processo de apreensão, uma vez que, além de auxiliarem o homem na percepção dessas temáticas, também denotam um fenômeno próprio do trânsito que se reflete na consciência, uma vez que a “consciência transitiva” (FREIRE, EPL, 1975: 60-61) preenche, ainda que parcialmente, os critérios da atitude crítica requerida pelo autor.
Segundo Freire: “Nutrindo-se de mudanças, o tempo de trânsito é mais do que simples mudança. Ele implica realmente nesta marcha acelerada que faz a sociedade à procura de novos temas e de novas tarefas.” (FREIRE, EPL, 1975: 46). Essa procura que a sociedade realiza no tempo de trânsito é o que difere as mudanças sociais ocorridas nesse tempo das que se verificam em outros momentos históricos:
- “E se todo Trânsito é mudança, nem toda mudança é Trânsito. As mudanças se processam numa mesma unidade de tempo histórico qualitativamente invariável, sem afetá-la profundamente. É que elas se verificam pelo jogo normal de alterações sociais resultantes da própria busca de plenitude que o homem tende a dar aos temas. Quando, porém, estes temas iniciam o seu esvaziamento e começam a perder significação e novos temas emergem, é sinal de que a sociedade começa a passagem para outra época” (FREIRE, EPL, 1975: 46).
Referindo-se à transição entre os anos de 1950 e 1960, ápice de uma intensa mobilização popular e dos governos populistas no país, o autor afirma: “Vivia o Brasil, exatamente, a passagem de uma para outra época. Daí que não fosse possível ao educador, então, mais do que antes, discutir o seu tema específico, desligado do tecido geral do novo clima cultural que se instalava” (FREIRE, EPL, 1975: 46). Convém dizer que essa é a primeira passagem do texto em que Freire faz menção ao trabalho educacional..
- Ela afirma, em síntese, que não é possível ao educador realizar seu trabalho durante o trânsito, sem a devida compreensão dos valores contraditórios daquele período histórico; o que, como já foi mencionado, só pode ocorrer mediante a apreensão das suas temáticas. A fim de contextualizar as variadas apreensões e expressões das referidas temáticas e valores, Freire recorre às concepções de sociedade fechada e sociedade aberta e à diferenciação entre temas velhos e novos.
Os conceitos de “sociedade fechada” e “sociedade aberta” (FREIRE, EPL, 1975: 47) são originários de uma obra do filósofo Karl Popper, intitulada A Sociedade Democrática e seus Inimigos. Freire utiliza os conceitos sociedade fechada/sociedade aberta para tratar desse movimento contraditório da sociedade em favor das mudanças e contra elas que dinamizava a sua transição para uma nova época. Sua apropriação dos conceitos de Popper talvez se dê em razão de uma possível proximidade entre os dois autores a respeito da discussão da participação de setores sociais na elaboração de reformas democráticas; mas esta proximidade é, não obstante, bastante restrita e, ao menos dentro da bibliografia analisada neste trabalho, não oferece maiores desdobramentos. Articulando as concepções de sociedade fechada e sociedade aberta com a diferenciação entre os temas sociais, Freire afirma:
- “E que temas e que tarefas teriam sido esvaziados e estariam esvaziando-se na sociedade brasileira de que decorressem a superação de uma época e a passagem para outra? Todos os temas e todas as tarefas características de uma ‘sociedade fechada’. [Ou seja] Sua alienação cultural, de que decorria a sua posição de sociedade ‘reflexa’ e a que correspondia uma tarefa alienada e alienante de suas elites. Elites distanciadas do povo. Superpostas à sua realidade.
Povo ‘imerso’ no processo, inexistente enquanto capaz de decidir e a quem correspondia a tarefa de quase não ter tarefa. De estar sempre sob. De seguir. De ser comandado pelos apetites da ‘elite’, que estava sobre ele. Nenhuma vinculação dialogal entre estas elites e estas massas, para quem ter tarefa corresponderia somente seguir e obedecer. Incapacidade de ver-se a sociedade a si mesma, de que resultava como tarefa preponderante a importação de modelos, a que Guerreiro Ramos chamou de ‘exemplarismo’” (FREIRE, 1975: 47).
- Em estudo intitulado Paulo Freire e o Nacionalismo-Desenvolvimentista, Vanilda Paiva defende que a ligação do conceito “povo”, em Freire, à bibliografia utilizada pelos nacional-desenvolvimentistas e às temáticas por eles abordadas, explicita a influência por ele sofrida de autores como Oliveira Vianna e Alberto Guerreiro Ramos. Este, em particular, compreende o “povo” como “um conjunto de núcleos populacionais articulados entre si pela divisão social do trabalho, participantes de uma mesma tradição e afetados por uma mesma consciência coletiva de idéias e fins” (RAMOS apud PAIVA, 1980: 190, grifos meus). Em outra obra,
A Redução Sociológica, o mesmo autor faz uma distinção entre os “povos”, destacando aqueles que seriam “históricos” de outros por ele considerados “naturais”, dizendo: “O ‘histórico’ pode ser entendido como uma dimensão particular do ser, na qual até agora têm ingressado alguns mas não todos os povos” (RAMOS, 1958: 22).
- Aparentemente, Guerreiro Ramos utiliza, na segunda obra supracitada, os termos “povo” e “sociedade” indistintamente. Para ele: “O que distingue a sociedade ‘histórica’ daquela que carece desse atributo, é ‘a consciência da liberdade’, a personalização” (RAMOS, 1958: 22).
Ou seja, trata-se de uma distinção de caráter subjetivo que remete à visão que essas sociedades têm de si mesmas. No entanto, a diferença de consciência das sociedades históricas em relação à das sociedades naturais não implica desconsiderar os fatores objetivos que as constituem, uma vez que Guerreiro Ramos afirma:
“Basta que fatores objetivos suscitem nas sociedades rudimentares [naturais] a modificação do modo como os indivíduos se relacionam entre si e com a natureza, tornando-o mais independente da pressão dos costumes, para que uma nova postura existencial aberta à história apareça em tais sociedades”, sendo que a “consciência crítica surge quando um ser humano ou um grupo social reflete sobre tais determinantes e se conduz diante deles como sujeito” (RAMOS, 1958: 22-23).
Pode-se observar, nesta concepção, certa proximidade entre, de um lado, a noção de povo e o papel da consciência crítica na sua constituição que Guerreiro Ramos defende, e do outro, a concepção de povo adotada por Freire, uma vez que este também reivindica um determinado modo do homem de relacionar-se com o outro e com a natureza como necessário à constituição do povo, em vista da importância que vê na participação da sociedade na esfera pública.
- Mas para Freire, ao contrário da tese defendida por Guerreiro Ramos, a criticidade da consciência não marca um divisor entre relações humanas de um estado natural para um estado histórico, uma vez que historicidade e criticidade são características do homem que se desenvolvem na sua relação com o mundo. Pelo contrário, a passagem dos membros de uma sociedade à condição de povo representa um desenvolvimento das disposições naturais do homem, pois ocorre através do reconhecimento por essa população, mediante a análise crítica da realidade, de sua formação e desafios históricos; em suma, uma transformação social da consciência humana que a possibilita apropriar-se dessas disposições de forma autônoma e propositiva.
Sendo que a sociedade fechada mantém os homens imersos em seu processo histórico, sem possibilitar-lhes reconhecer e assumir sua condição de povo, na medida em que esta possibilidade, em razão das transformações em vigor na sociedade brasileira, passa a existir, Freire se preocupa em aproveitar o trânsito social em vigor para abrir a sociedade aos novos temas, mas atenta-se ao risco da sociedade em transição encaminhar-se para massificação dos seus sujeitos, dificultando o desenvolvimento da sua criticidade e freando neles as iniciativas de mobilização e transformação social.
Com o tempo, a cultura, os costumes e a tecnologia mudam, e com elas
a sociedade e o mercado de trabalho.